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Editorial

A construção da democracia

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A construção da democracia


0 preâmbulo da Constituição de 1988 nos diz que o Brasil deve ser "um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". 

Relembrar essas palavras à luz dos acontecimentos dos últimos meses e dias em nosso país causa um choque. A omissão do Estado em cumprir seu dever mais básico, qual seja o de garantir a defesa da vida, da propriedade e da dignidade do ser humano, evidencia a queda vertiginosa do império da lei para uma situação de anomia cada vez mais generalizada. 

As cenas violentas difundidas massivamente pelos meios de comunicação disseminam a sensação de vivermos em terra de ninguém. Elas acabam por banalizar o crime e a violação dos direitos em níveis sem precedentes, até mesmo para situações de guerra, como no caso dos linchamentos. 

No momento em que os olhos do mundo se voltam para o Brasil em razão da Copa do Mundo, categorias profissionais e movimentos sociais — ou apenas franjas dissidentes dos desígnios da maioria — se aproveitam não para reivindicar dentro da lei e da ordem, como seria de seu direito, mas para afrontar a coletividade com greves selvagens, interrupção de servigos essenciais, invasão e destruição de patrimônio público e privado. 

Policiais em greve ou neutralizados pela covardia eleitoreira das autoridades assistiram impávidos a saques ao comércio perpetrados em Pernambuco e à paralisação dos ônibus por meios truculentos, alheios a qualquer prática sindical civilizada, como ocorreu em São Paulo. A perspectiva de punição para atos criminosos cometidos individualmente ou em grupo parece depender do foco da mídia. 

Mas como a imagem de ontem é logo superada pela de hoje sem que os poderes constituídos ofereçam proteção ou reparação a quem tem os direitos esbulhados, prevalece a impunidade, que nos leva ao estágio onde não mais são respeitados ou garantidos os direitos à vida e à propriedade. 

A escalada de atentados aos direitos da maioria culmina com a greve dos metroviários, que mergulha novamente no caos a maior cidade brasileira, provocando sérias dúvidas sobre a capacidade das autoridades, nos três níveis de governo, em garantir a mobilidade urbana, a uma semana do jogo inaugural na Arena Corinthians. 

Os que se omitem talvez estejam inertes por acharem que a democracia é isso e não um projeto em construção, que no Brasil ainda está dando os primeiros passos. Saímos de uma ditadura e lentamente deslizamos para a barbárie que atinge a todos, independentemente de posição política ou nível de renda. 

Assim, há justificados temores de que a desordem social prevaleça e o país retroceda nas conquistas sociais e econômicas obtidas nos últimos 20 anos. Apesar da inclusão de milhões de brasileiros nos mercados de trabalho e de consumo, ainda é nítido o impasse entre a massa de desenraizados que clama por direitos e a oligarquia política que, indiferente a tudo e a todos, manipula o aparelho de Estado em beneficio próprio, mantendo intactos seus privilégios e seu poder. 

As convulsões sociais revelam que nosso progresso recente é mais aparente do que real. Se não restaurarmos a credibilidade da política como instrumento de mudanças, continuaremos a ser uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta, com ilhas de excelência num mar de carências. 

Como dizia Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento é obra de séculos. Superá-lo demonstra ser tarefa bem mais difícil do que a possível, e talvez provável, conquista do hexacampeonato mundial de futebol.

Abram Szajman é presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).

Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 06/06/2014, pág.A03.

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