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Economia

A febre das ‘bets’ como estratégia financeira

Pesquisa da FecomercioSP mostra que parte significativa dos paulistanos aposta online para aumentar a renda; veja matéria divulgada no site da revista Problemas Brasileiros

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A febre das ‘bets’ como estratégia financeira
A soma total dos gastos nas plataformas chega a R$ 68,2 bilhões — ou cerca de 0,6% do PIB nacional! (Arte: TUTU)

A estratégia de Robson Correia estava traçada desde o fim de maio. “Um dia depois do título do Manchester City, fui a uma papelaria, comprei um caderninho e comecei a anotar todas as contratações do futebol inglês para a próxima temporada. Daí, tirava uma hora por dia para estudar os novos jogadores, fundamentos, gols, histórico de lesões etc. Eu sou capaz de falar razoavelmente bem sobre qualquer time da Premier League [a primeira divisão do campeonato da Inglaterra]”, conta à reportagem da Problemas Brasileiros (PB)orgulhoso, enquanto dirige o carro que alugou há um ano para trabalhar como motorista de aplicativos. 

A rotina pelas ruas de São Paulo se adapta perfeitamente à sua jornada paralela: assistir à maior quantidade possível de partidas dos principais campeonatos europeus e, depois, estudá-los ao limite. Na tarde em que conversou com a PB, ele organizava o calendário de trabalho para acompanhar a primeira rodada da fase de grupos da Liga dos Campeões — o principal torneio de futebol do planeta —, programada para começar na segunda quinzena de setembro. Em especial, queria comprovar os desempenhos do Aston Villa, do Manchester City e do Arsenal, todos clubes ingleses (embora seja torcedor, mesmo, do espanhol Real Madrid). E esse acompanhamento todo não era à toa: “Foram [os times] nos quais apostei”.

Apesar de gostar de futebol, a estratégia de Robson (28 anos, negro, morador do Jardim Peri, na zona norte da capital paulista) é, antes de tudo, financeira. Desde que plataformas de apostas online explodiram no País, há cerca de dois anos, não há um mês sequer em que ele não tente “esticar” a renda doméstica — ele mora com os pais — apostando em jogos dos grandes torneios europeus. “Lá, as coisas são mais óbvias. O futebol brasileiro é muito incerto”, opina, sob a lógica de investidor. Ainda que nem sempre funcione, ele garante que as poucas vezes em que foi premiado com quantias mais altas valeram por todas as outras em que perdeu. No cotidiano, custos e ganhos se equilibram. “Houve mês que paguei o aluguel inteirinho e todas as contas da casa só com dinheiro de apostas”, revela, com um sorriso no rosto, antes de emendar. “O segredo é estudar muito. Os chutes dos resultados vão ficando menos aleatórios. É possível acertar de 70% a 75% dos placares — e, daí, vai ‘pingando’ alguma coisa na conta.”

O perfil de Robson não é incomum nesses sites, conhecidos como bets (do inglês “to bet”, “apostar” em português). Uma pesquisa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), publicada no fim de agosto, revelou que, dentre os paulistanos que utilizam essas plataformas com frequência — 17% da população da cidade —, um quarto (25%) o faz porque pretende aumentar os rendimentos domésticos de forma mais rápida. Outros 9% ainda afirmam que as apostas são um meio de investimento. “É um dado preocupante”, observa o economista Jaime Vasconcellos, assessor da Entidade. “Primeiro, porque estamos falando de pessoas que estão buscando renda de alguma forma, ou seja, cidadãos de classes mais baixas. Depois, porque demonstra a exclusão financeira delas, já que apostas estão longe de ser uma modalidade de investimento, uma vez que se baseiam justamente no contrário — na sorte. Além disso, esses jogos estão tirando recursos que compõem um orçamento doméstico já bem apertado, e a tendência é que isso aumente”, completa.

Alguns números da pesquisa chamam mais a atenção de Vasconcellos. Tal como Robson admite, a rotina de um apostador é marcada mais por perdas (44% dos entrevistados disseram que essa é a rotina de resultados) do que ganhos (30%). A narrativa do motorista de aplicativo, porém, sugere que ele se encaixa nos 26% que dizem nem ganhar, nem perder. E se nem todo mundo aposta estrategicamente com a mesma organização de Robson — que estuda jogadores e times e seleciona as partidas que vale mais a pena apostar —, quase metade (49%) dos paulistanos que usam essas plataformas jogam com frequência. 

Dados ainda mais desafiadores, na visão de Vasconcellos, surgem quando colocados lado a lado do tíquete médio, o qual, para 52% dos entrevistados, não passa de R$ 50 por mês. Praticamente um quarto (19%) dessas pessoas deixa todo mês, pelo menos, R$ 100 nesses sites. “Essa população compromete tanto o orçamento atual — deixando de comprar comida ou pagar contas para apostar — quanto o futuro, ao não economizar ou investir em opções seguras. Esse problema de poupança, no Brasil, tende a piorar”, analisa o economista.

Vasconcellos ainda observa, nas entranhas do estudo, um aspecto um tanto perverso da lógica desses apostadores. “Mesmo que R$ 50 pareçam pouco dinheiro, em um ano, isso equivale à metade de um salário mínimo. Mensalmente, é o valor de uma conta de celular — e, agora, as apostas se tornaram mais um custo fixo no orçamento das famílias.”

Mercado de bilhões

No início de agosto, refletindo a preocupação de outros setores produtivos do País, o banco Itaú publicou um extenso estudo a respeito dos impactos das plataformas sobre a vida financeira dos brasileiros. Os dados mostram que só as taxas de serviço pagas pelos usuários, entre junho de 2023 e o mesmo mês deste ano, somaram R$ 24,1 bilhões. No mesmo período, houve uma queda de R$ 200 milhões nos prêmios pagos pelas bets aos clientes. Considerando os montantes totais gastos nessas plataformas — ou seja, taxas e valores efetivamente apostados, sem considerar premiações pagas —, a soma chega a R$ 68,2 bilhões (ou cerca de 0,6% do PIB nacional). Desses, R$ 44,3 bilhões voltaram aos usuários em formato de gratificações, o que significa, portanto, que aproximadamente 36% desse dinheiro todo ficaram com esses sites. A despeito das cifras altíssimas, o Itaú ainda acha cedo afirmar que as bets estejam afetando outros setores, como o varejo. “Até porque as vendas têm apresentado resultados dentro do esperado”, diz um dos trechos do relatório. 

Não é a mesma percepção de Vasconcellos, da FecomercioSP, que costuma rodar o interior de São Paulo em eventos e palestras para os empresariados locais do setor. “As pesquisas ainda não conseguiram captar, mas muitos setores afirmam que as apostas já contribuem para as dificuldades atuais, agravando a inadimplência e a pressão sobre o orçamento familiar.”

Regulamentação em curso

As bets chegaram ao País, em meados de 2018, como versões digitais dos tradicionais jogos de azar, como roleta e cassino, operando clandestinamente. Especialistas ouvidos pela PB explicam que, tal como os aplicativos de transporte, essas plataformas, primeiro, criam a demanda e, depois, buscam a regularização. “Foi o que aconteceu com a Uber e a 99Táxi”, afirma Fábio Tozi, pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em um dos últimos atos do governo Temer, as apostas foram liberadas no Brasil enquanto a regulamentação não ficava pronta, com um prazo inicial de dois anos. As plataformas, então, começaram a focar no futebol. Em 2019, a NetBet patrocinou o Fortaleza, e clubes como Flamengo e Fluminense começaram a negociar. Hoje, 75% dos contratos principais dos times brasileiros vêm dessas empresas, totalizando cerca de R$ 1,4 bilhão, segundo a consultoria EY. Além do futebol, a pesquisa da FecomercioSP aponta que 45% dos apostadores paulistanos preferem games, seguidos por jogos de azar online (44%), como pôquer e caça-níqueis — o famigerado “Jogo do Tigrinho”.

Em meio a tudo isso, o governo estipulou até agosto para que os negócios do setor se registrassem na Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, e quem perdesse esse prazo não poderia continuar operando no País a partir de janeiro de 2025. Entraram no processo 113 plataformas, que, agora, aguardam avaliação da pasta. Enquanto isso, essas empresas continuam funcionando, mas são reguladas e sediadas no exterior, conforme o relatório do Itaú. O advogado Eduardo Carlezzo, especialista em Direito Esportivo, destaca o risco à credibilidade do futebol. “O torcedor passou a desconfiar de qualquer falta feita de forma imprudente”, afirma, em artigo publicado na Folha de S.Paulo no ano passado. Ele se refere, no texto, às denúncias de manipulação de jogos ocorridos nos últimos dois anos. Em junho de 2023, uma grande operação policial investigou cerca de 20 partidas do ano anterior, envolvendo jogadores de clubes como Santos, Chapecoense, RB Bragantino, Sport e Juventude.

“Se foi possível corromper jogadores da elite do futebol nacional, é muito mais fácil comprar aqueles que jogam em divisões estaduais de acesso ou em competições amadoras”, continua Carlezzo. Há alguns anos, o especialista tem sugerido que a regulamentação das bets no Brasil estipule campeonatos profissionalizados específicos nos quais seja permitido apostar, apenas de caráter nacional.

Na ocasião em que Robson deu entrevista à PB, no começo de setembro, ele fazia planos ainda maiores com as apostas. Como não estava perdendo tanto dinheiro, acreditava que quanto mais aumentasse os estudos sobre os jogos, mais poderia ganhar no futuro próximo. “Quem sabe pagar uma faculdade, né?!.” 

Acesse a matéria na íntegra aqui.

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