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Editorial

Arbitragem como maturidade humana e jurídica

Uma oportunidade de resolver as questões e crescer em liberdade e responsabilidade

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Arbitragem como maturidade humana e jurídica
Angela faz parte da Câmara Arbitral da FecomercioSP (Arte: TUTU)

Por Angela Gandra*

Tive a oportunidade de estudar com profundidade a obra do professor Lon Fuller, catedrático de Teoria do Direito na Harvard Law School, nos Estados Unidos, que se destacou pela sua contribuição para o Direito Contratual e por exercer a função de árbitro em questões trabalhistas. A experiência do professor levou-o a adentrar os fundamentos da arbitragem e da mediação como processos autoritativos e eficazes para a resolução de conflitos — os quais preferia chamar simplesmente de “resolução de problemas”.

Como um idealizador do Direito e das relações sociais a partir da ação livre e responsável dos cidadãos, concebendo-o ainda como o empreendimento que submete a conduta às regras, ele acreditava especialmente na capacidade humana de contribuir para a organização social, sistematizando as próprias relações para otimizá-las. Dessa forma, as pessoas vão buscando mecanismos satisfatórios e combatendo conformismos e parasitismos, principalmente, nas questões que as afetam no campo da Justiça. 

Por essa razão, Fuller trabalhou para assegurar a liberdade das partes de recorrer ao procedimento que mais lhe conviesse, amparado pela lei, e acioná-lo se (e quando) quisesse, guardada sempre a imparcialidade, quando estivessem em jogo os seus direitos. Nessa linha, ele até discordava da doutrina de Karl Llewelyn, que, no sentido oposto, advogava pelo fortalecimento de contratos a partir de políticas públicas. Fuller era partidário da reciprocidade nas relações, permitindo às partes avaliar os próprios interesses e acordos. Afirmava que haveria uma desconfiguração social se cada relação humana fosse imposta e controlada pelo Estado. A teoria do professor sempre me atraiu por sua fundamentação na antropologia, considerando o ser humano como individual, racional, relacional, livre e responsável — e a própria ordem social como uma conjugação das pessoas com vistas ao bem comum, à amizade (fundamento aristotélico!) e a eunomics que objetivaria a good life (ou vida plena).

A arbitragem seria um desses arranjos que, a partir de uma inciativa e adesão livre, evita a submissão a uma legislação artificial e sufocante, além de garantir a devida segurança fundamentada na confiança e, ainda, estimular o florescimento pessoal, por colocar a responsabilidade da escolha nas mãos dos indivíduos. Dessa forma, ou seja, inside out, os indivíduos vão conformando a ordem e as prática sociais de uma maneira conscienciosa e livre, porém sustentadas pela lei, já que o poder do árbitro é delegado pelo governo e, ao mesmo tempo, pelo consentimento dos litigantes. Por essa razão, entende que, ao árbitro, cabe um papel ainda mais cuidadoso e responsável pela carga de liberdade que o circunda e pela expectativa direta das partes que a ele recorrem.

Ao retornar ao Brasil, após esses estudos em Harvard, passei a fazer parte da Câmara Arbitral da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), participando de muitos eventos da ICC (sigla em inglês para a Corte Internacional de Arbitragem), principalmente por acreditar nesse processo, ainda não difundido ou acessível de maneira suficiente no Brasil. Eu queria fortalecê-lo. 

Neste mês, celebro com a Entidade os 28 anos da Lei 9.307/96, que regulamentou essa prática jurídica no País, abrindo um caminho, hoje, praticamente imprescindível para a solução de conflitos — a qual, a partir daí, foi ganhando espaço e respeito, em especial tendo em conta a alta judicialização que afeta a Justiça brasileira. Os seus princípios — imparcialidade, contraditório e livre convicção — podem assegurar decisões assertivas e justas nos litígios relativos a direitos patrimoniais.

Por outro lado, a vantagem de contar com árbitros especializados e de confiança é também uma garantia frente à insegurança jurídica. Paralelamente, enfrenta a acentuada morosidade judicial atual que, de fato, atenta contra a Justiça, pois a sua prática, fora do tempo, transforma-se por si só em injustiça. Nesse sentido, o recurso da arbitragem vai se tornando praticamente um atalho necessário, também pela celeridade. A discrição é assegurada ao longo do processo pela confidencialidade — o que, muitas vezes, apesar do segredo de Justiça, pode não ocorrer em decorrência de vazamento de dados.

A legislação em questão também abriu espaço para a mediação, reconhecida como um preâmbulo que pode se tornar definitivo para a composição das demandas tanto no nível advocatício como no judiciário. Apesar de ambos os processos visarem à conciliação e à composição responsável, há passos a serem dados para a completa maturação do sistema e de seus atores, já que, embora, em tese, a decisão arbitral deveria ser pacífica e definitiva — a partir da cláusula referente à opção arbitral como excludente do debate judicial —, em alguns casos, a parte descontente acaba judicializando por discordar da decisão, o que também supõe certa falta de maturidade ao se recorrer ao paternalismo do Judiciário em detrimento da própria escolha.

A arbitragem nos brinda com a oportunidade de resolver as questões e crescer em liberdade e responsabilidade, compondo os conflitos pessoais de forma pacífica e madura e, assim, contribuindo, também, de certa forma, para a consecução de uma ordem social mais justa e harmoniosa.

* Angela Vidal Gandra da Silva Martins é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ex-secretária nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Paulista de Letras Jurídicas e árbitra da FecomercioSP Arbitral.

Artigo originalmente publicado no portal JOTA em 25 de setembro de 2024.

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