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Economia

Responsabilização excessiva de plataformas pode gerar insegurança jurídica e prejudicar ecossistema digital

Abes e FecomercioSP discutem decisão do STF que muda Marco Civil da Internet e traz consequências para o ambiente regulatório no Brasil

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Responsabilização excessiva de plataformas pode gerar insegurança jurídica e prejudicar ecossistema digital

A proliferação de conteúdo nocivo na internet — como os que incitam o ódio contra determinados grupos da população ou incentivam a prática de atos criminosos — é um problema mundial que tem levado países a adotarem fortes medidas de enfrentamento. No entanto, na visão de especialistas, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou parcialmente inconstitucional o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, responsável por definir regras acerca da responsabilização civil por conteúdo de terceiros, extrapolou esse objetivo ao impor uma responsabilização excessiva e indiscriminada a todos os atores do ecossistema digital.

O entendimento é que o Supremo deveria ter se limitado a ampliar a regulação contra materiais objetivamente nocivos, como discursos de ódio, racismo e violência, sem criar obrigações que prejudiquem empresas de todos os portes e elevem a insegurança jurídica. Para isso, poderia ter tipificado no Artigo 21 do Código Civil — que determina a remoção imediata e obrigatória de conteúdos — os tipos de material sujeitos a esse procedimento, como os que põem em risco crianças e adolescentes, ataques contra mulheres, racismo e incitação à violência.

“Acredito que esse era o ponto nevrálgico que precisávamos regular, e o Supremo acabou indo muito além dessa regulação, adotando a regra de que, para qualquer crime, com uma mera notificação, a plataforma é obrigada a retirar o conteúdo do ar — e se não o fizer, será corresponsabilizada”, afirmou o advogado e fundador do ITS Rio, Ronaldo Lemos, durante o webinário Impactos da decisão do STF no Marco Civil da Internet, realizado pela Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes), com o apoio da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), na última quarta-feira -feira (2). 

Decisão afeta mais os pequenos negócios do que as Big Techs

Outro ponto de preocupação dos especialistas é que o Supremo, embora tenha focado nas Big Techs, tomou uma decisão que afeta a internet como um todo. Segundo Lemos, o STF se baseou na legislação europeia, mas, ao adaptar esses objetivos para o contexto brasileiro, não considerou que, na Europa, há uma distinção clara entre a responsabilidade aplicada às grandes empresas de tecnologia e às demais. 

“A decisão do Supremo atinge não só o Google, a Meta, a Amazon e todas as Big Techs, mas também os pequenos fóruns, as caixas de comentários de jornais — como Folha e UOL —, o pequeno operador de um servidor que serve conteúdo, o gestor de fóruns da internet, o Reclame Aqui, o iFood, a OLX. Isto é, tudo está abrangido pela decisão do Supremo”, pontuou.  

Rony Vainzof, sócio do VLK Advogados e consultor de Proteção de Dados da FecomercioSP, concorda que teria sido mais adequado se o Supremo tivesse apenas ampliado o escopo dos crimes que não precisam de notificação para serem retirados do ar. Com a decisão, no entanto, o impacto foi muito ampliado, afetando diversas plataformas. “O que estamos discutindo aqui não são apenas as Big Techs, mas também as pequenas e médias empresas e todo e qualquer serviço online, com algumas exceções que o STF colocou”, explicou.

Na prática, isso representa uma pressão enorme para empresas de software, especialmente as de menor porte, que serão as mais prejudicadas — já que terão dificuldades técnica e operacional para cumprir as novas exigências. As Big Techs, por outro lado, contam com mais recursos e infraestrutura para adaptar sistemas. 

De acordo com Daniella Caverni, diretora da Abes e sócia do Efcan Advogados, se, antes, dependia-se da moderação do Judiciário para remover um conteúdo, agora, essa função passa a ser uma responsabilidade das aplicações. Com isso, estas terão de investir rapidamente em medidas técnicas proativas. Isso pode incluir a implantação de Inteligência Artificial (IA), filtros, análises preditivas, auditorias e produção de relatórios — mecanismos que os pequenos negócios provavelmente não dispõem.  Além disso, poderá envolver mais pessoal, já que, a depender do material, a análise sobre a sua derrubada pode ser subjetiva. “E, aí, precisamos da sensibilidade humana para olhar aquilo e saber se, de fato, será preciso remover aquele conteúdo”, acrescentou ela, apontando a dimensão dos efeitos que a decisão poderá se dar na prática. 

Daniella ainda demonstrou preocupação  com o fato de  as empresas de software terem de moderar o imenso volume de conteúdo online frente às novas responsabilidades impostas pela decisão do STF.

Insegurança jurídica e as consequências à liberdade de expressão

Os especialistas também mencionaram a falta de clareza provocada pela decisão. Lemos acredita que o Supremo substitui uma lei objetiva — o Marco Civil da Internet — por um regime de responsabilização confuso. Com a mudança, passam a existir quatro sistemas distintos para atribuir responsabilidade, o que aumenta a complexidade na hora de definir qual deles se aplica a cada caso.

Contudo, há também um efeito perverso sobre a liberdade de expressão: o Código Penal é extenso e, embora para crimes contra a honra ainda seja necessária ordem judicial para remoção de conteúdo, para os demais bastará uma notificação. Isso inclui apologia ao crime, desacato e extorsão — termos amplos que, de acordo com o advogado, podem censurar debates legítimos e denúncias jornalísticas, por exemplo. 

O acadêmico Demi Getschko expressou preocupação quanto ao retorno da prática notice and takedown, que exige a remoção imediata de conteúdo após simples notificação, sem uma avaliação mais aprofundada. Esse modelo foi amplamente rejeitado pela comunidade internacional há cerca de 10 ou 15 anos. Nos Estados Unidos, é aplicada exclusivamente em casos de violação de direitos autorais. Já em países como o Canadá, ao receber a notificação, as plataformas a encaminham ao autor para que ele se manifeste.

“Olhando de uma forma muito simplista, dá a impressão de que você assume que o sujeito é culpado antes de qualquer coisa, em vez de assumir que é inocente”, pontuou. “Todos os brasileiros podem reclamar de alguma coisa, e isso teria de ser levado em conta instantaneamente”, acrescentou.

Implicações a plataformas e marketplaces

No contexto dos marketplaces, a decisão do STF acaba atingindo diversos tipos de serviços que não podem ser tratados de forma uniforme, já que cada um tem características e responsabilidades específicas. Esse entendimento, aliás, já está previsto no Artigo 3º do Marco Civil da Internet, que estabelece que a responsabilização dos agentes deve ocorrer de acordo com a natureza das atividades que exercem. Além disso, caberia ao Legislativo avaliar todas as ramificações existentes nas aplicações de internet.

Vainzof pontuou que, a partir do momento que um intermediário recebe uma notificação extrajudicial — com exceção dos casos de crime contra a honra —, passa a ser civilmente responsável se não agir para remover o conteúdo relacionado a qualquer ato ilícito. “Então, além dos ótimos exemplos que Ronaldo já trouxe, imagine só uma violação de marca, que não está dentro da violação de direitos autorais nem na exceção de crime contra a honra?”, questionou. “Isso pode trazer um subjetivismo enorme”, acrescentou.

Ele também citou o risco de uma remoção em massa de conteúdos por medo de responsabilização e, na contramão, uma judicialização ainda maior, já que haverá mais procura pelo Judiciário nessas situações. Ademais, ressaltou que, ao contrário do que está sendo proposto no Brasil, outros países adotam uma abordagem baseada na avaliação de risco sistêmico em relação ao descumprimento da lei — o que pode motivar sanções. 

Repercussões no ambiente digital

No caso de anúncios com impulsionamento pago e uso de redes artificiais de distribuição, Vainzof alertou que, no mercado de publicidade digital, as plataformas que automatizam a compra e a exibição de anúncios poderiam ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros, mesmo sem participação editorial — o que, segundo o especialista, se aproxima de uma responsabilidade objetiva e levanta receio acerca dos desdobramentos causados e do funcionamento desse setor. 

A decisão do STF também determina que todos os provedores com atuação no Brasil estabeleçam sede e representação legal no País. No entanto, o Marco Civil da Internet já prevê a obrigatoriedade de cumprimento da legislação brasileira pelas empresas que exploram o mercado nacional, sem exigir a instalação de uma sede ou a presença de representante local, mesma lógica adotada pela LGPD. 

“Não estou falando que empresas que queiram explorar o mercado nacional não tenham que cumprir a legislação brasileira. Claro que têm de cumprir, mas a obrigação de se estabelecer uma sede e de contar com um representante legal no País pode ser excessiva e afastar serviços digitais de uma forma geral”, criticou. 

Outra questão levantada foi a respeito dos provedores que poderão ser responsabilizados por não removerem de forma imediata conteúdos relacionados a crimes graves, com base no chamado dever de cuidado por falha sistêmica. Nesses casos, a responsabilização não se dará pela presença isolada de um conteúdo ilícito, mas quando houver falhas estruturais no controle da plataforma. No entanto, esse tipo de dever, em outras legislações, costuma ser acompanhado por um órgão regulador que avalia as circunstâncias da falha — o que não está previsto na decisão do STF e pode tornar a aplicação da medida confusa ou até prejudicial.

Papel do Legislativo

Diante desse quadro, os especialistas defendem que caberia ao Legislativo, por meio de um debate amplo e profundo com a sociedade, discutir a responsabilização no ambiente digital. A decisão não deveria ser tomada por ação judicial, mas por meio da lei, já que restrições à liberdade de expressão não podem ser realizadas por outros instrumentos.

“Não poderíamos também deixar de externar aqui a nossa inconformidade com essa falta de alinhamento entre os poderes para que a gente possa avançar numa democracia de fato plena, com as pessoas gozando dos seus direitos”, afirmou Andriei Gutierrez, presidente da Abes e do Conselho de Economia Digital e Inovação da FecomercioSP. 

“A tecnologia é sempre muito mais veloz do que qualquer legislação. Então, qualquer lei que venha a regular tecnologia e internet tem que ter muito cuidado, muita parcimônia”, destacou Daniella, indicando a necessidade de cautela para que a norma não se torne obsoleta em pouco tempo e reforçando que cabe ao Congresso conduzir esse processo.

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