Economia
18/07/2024Um Brasil gigante, rico e desigual
Revista Problemas Brasileiros destaca que a alta concentração de renda faz do País uma das nações mais desiguais do mundo
Nesta edição de junho e julho, a revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), mostra que economicamente o Brasil cresce, mas que a desigualdade expande na mesma moeda. Confira! a reportagem na íntegra.
Em 1974, o economista Edmar Bacha popularizou o termo “Belíndia”, que resumia as profundas contradições do Brasil à época. Em seu artigo “O Rei de Belíndia: uma fábula para tecnocratas”, ele criticava as políticas praticadas pelo regime militar que, segundo o autor, criavam um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia.
Quarenta anos depois, em 2014, a revista britânica The Economist atualizou o termo para “Italordânia”. A publicação afirmava que a parcela mais rica do Brasil já não estava mais no mesmo nível da Bélgica — e, sim, mais próxima da Itália. A Índia, por sua vez, era muito mais pobre que Estados brasileiros vulneráveis, como Maranhão e Piauí, que se aproximariam da Jordânia. O Brasil era, então, a sétima maior economia do mundo, com um PIB de US$ 2,35 trilhões. Naquele ano, o índice de Gini do Brasil — calculado pelo Banco Mundial para medir a desigualdade — foi de 52. O indicador vai de 0 a 100, e quanto maior, mais desigual.
Jogos de palavras à parte, a verdade é que o Brasil segue rico e desigual, consolidando o resumo de Bacha. O PIB brasileiro cresceu 2,9% em 2023, somando R$ 10,9 trilhões, cerca de US$ 2,2 trilhões. Ainda em 2022, a projeção do FMI já era que o País ultrapassaria o Canadá, chegando posto de nona maior economia do mundo, com um PIB estimado de US$ 2,13 trilhões — o que se confirmou. No entanto, considerando os países mais ricos do mundo, o Brasil é o único que figura em outro ranking: o dos mais desiguais, dividindo a 14ª posição com o Congo. A Índia, famosa pela pobreza, é a quinta maior economia do mundo, mas não está no ranking das mais desiguais.
Ranking da ONU
A classificação faz parte do último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), relativo aos anos de 2021 e 2022. Três anos trás, o índice de Gini do Brasil era 48,9, o menor resultado desde 2012. Apesar da melhora ante os 52 de quase dez antes, chama a atenção que o País figure nos dois rankings, ou seja, o crescimento da economia como um todo não reverbera nas condições de vida da população. O Gini da Índia é 35,7; o da Bélgica, 27,2. Em 2022, o Gini do Brasil subiu para 52,9, uma nova piora, em dados ainda não compilados para a comparação com outros países. Segundo Bacha, o seu em objetivo em 1974 era justamente criticar o uso do PIB como medida de bem-estar, já que só os “belgas” se beneficiavam do aumento da riqueza, enquanto os “indus” se mantinham na pobreza. “A fábula se foi, mas o nome pegou”, relembra, hoje, 50 anos depois.
Bacha explica que, depois da redemocratização, em 1985, e especialmente a partir do Plano Real, em 1994 — do qual o economista é um dos criadores —, a situação melhorou, mas o Brasil mantém uma das mais concentradas distribuições de renda do mundo. “Belíndia continua entre nós”, resume.
O bolo cresce, mas para quem?
A economista Carla Beni, professora dos MBAs na Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que, até o início dos anos 2000, era corrente a ideia de que era preciso fazer a economia crescer para, depois, dividir a riqueza. “Isso resultou numa falácia, porque a economia cresce, ainda que aos solavancos, no que chamamos de ‘voo de galinha’. Mas é uma expansão com concentração de renda, que não necessariamente gera redução de desigualdades, e esse é o ponto central.”
O exemplo mais claro dessa linha de pensamento no Brasil foram os economistas Delfim Netto e Carlos Langoni, que, durante o regime militar, defendiam a tese de “primeiro, fazer o bolo crescer para, depois, dividir”. O fermento funcionou, mas as maiores fatias foram para os mesmos pratos de sempre. “O que a gente observa, hoje, pelas evidências disponíveis e pela experiência histórica, é que aquela tese não é verdadeira. O crescimento econômico, sozinho, não necessariamente nos leva a uma redução da desigualdade”, reforça Pedro Fandiño, pesquisador no Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF) e à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O crescimento econômico pode levar tanto ao aumento quanto à redução da desigualdade, a depender dos grupos sociais que se beneficiam do crescimento”, resume.
“É perfeitamente possível que a economia cresça concentrando renda. Nascer no Brasil passa a ser uma roleta-russa. Se você nasce numa família que consegue prover, via setor privado, as ineficiências do setor público, sai na frente. Se você não nasce nessa família, fica girando na estatística, e mais de 70% da sua vida adulta são reflexos da família em que nasceu”, afirma Carla, da FGV. Ela defende que o PIB é um indicador de síntese de uma economia. O mundo inteiro usa esse índice, mas precisa passar por um processo de crítica. Segundo a economista, à medida que se comemora quando o PIB cresce, mesmo que isso seja válido, é preciso colocar uma lupa sobre os números. O PIB é medido sobre três óticas: a oferta, a demanda e a renda. Só que distribuição de renda, qualidade de vida, saúde e educação não se expressam pelo PIB. Então, não mede a qualidade de vida da população. “A exportação de grãos gera uma riqueza que vai beneficiar um grupo muito pequeno, concentradíssimo de renda”, exemplifica.
Os dados de concentração de renda escancaram o que dizem os especialistas. De acordo com nota técnica elaborada pelo economista Sérgio Gobett e publicada pelo Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, a renda de 15 mil pessoas que estão no topo da pirâmide social no Brasil cresceu até o triplo do ritmo observado entre o restante da população. Entre essa elite, que representa 0,01% da população, o crescimento médio da renda praticamente dobrou (96%) entre 2017 e 2022.
Enquanto isso, o ganho da maioria da população adulta, considerando-se os 95% mais pobres, avançou cerca de 33%, praticamente o mesmo porcentual da inflação no período. Ao ampliar a análise para identificar a renda do grupo 0,1% mais rico, formado por cerca de 154 mil pessoas, o estudo constata que cresceu, em média, 87% entre 2017 e 2022. O ganho mensal desses brasileiros subiu de R$ 236 mil para R$ 441 mil nos cinco anos do levantamento. Na fatia 1% mais rica, o crescimento também foi alto, de 67%. Entre os 5% com maiores ganhos, a alta foi de 51%.
Dentre os fatores que explicam o crescimento da renda na elite, o estudo destaca dois em especial: os ganhos com a atividade rural, parcialmente isenta de impostos, que cresceu especialmente entre os mais ricos; e o aumento do valor distribuído em forma de lucros e dividendos, que passou de R$ 371 bilhões, em 2017, para R$ 830 bilhões, em 2022.
Embora latente e óbvia no Brasil, a concentração de renda é um fenômeno global. O último relatório da Oxfam International aponta que 50% dos ativos globais estão nas mãos de 1% da população. No Brasil, a proporção é de 60% para 1%. A soma da riqueza dos bilionários cresceu 34% entre 2020 e 2023, o triplo da inflação no período. Em números, eles ficaram US$ 3,3 trilhões mais ricos, valor 60% maior que todo o PIB brasileiro.
Enquanto isso, a parcela de riqueza dos 60% mais pobres, que era de 2,26% do total, caiu para 2,23%, segundo os dados compilados pela ONG a partir do Relatório Global de Riqueza de 2023, do banco suíço UBS, e dos dados globais de riqueza do Credit Suisse relativos a 2019, período anterior à pandemia de covid-19.
Passado colonial, presente pouco distributivo
Atualmente, a ideia de que o “bolo precisa crescer” já foi superada pela maioria dos especialistas que estudam pobreza e desigualdade. Hoje, o trabalho desses pesquisadores se concentra em investigar a concentração de renda e como quebrar um círculo que parece vicioso. O passado colonial explica muita coisa — não é à toa que a América Latina é a região mais desigual do planeta —, mas não tudo. Novas correntes de pensamento dão conta de que mais do que aconteceu na história brasileira, o que deixou de acontecer explicaria melhor o ponto aonde chegamos.
“As origens da desigualdade remontam das capitanias hereditárias. Se a renda já é desigual no Brasil, a distribuição da riqueza é mais desigual ainda. Em países com uma certa redistribuição de terras, houve também redistribuição da riqueza e dos poderes, que se converteu em distribuição de renda no futuro. No País, não houve esse processo, e a concentração de terra sempre foi imensa”, afirma Sandro Sacchet, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), explicando o primeiro tijolo do que construiu a desigualdade no Brasil.
Fadiño, do Cede, lembra ainda que, no período da colonização, foram estabelecidas instituições nocivas que se reproduziram desde então. E nestas estariam as origens da nossa desigualdade. “É claro que há um poder nesse argumento, principalmente quando analisamos, no caso do Brasil, o papel da escravidão — que durou séculos e uma abolição que deixou os ex-escravizados completamente à deriva, sem qualquer condição de se integrar à sociedade.” No entanto, agora, há um outro conjunto de explicações que, na opinião do pesquisador, são complementares e mais interessantes. “Elas dizem respeito menos ao que aconteceu nos primeiros séculos de formação do País, mas, principalmente, ao que não aconteceu no Brasil no século 20”, afirma. Segundo Fadiño, ao observar os países desenvolvidos hoje, muito menos desiguais que o Brasil, alguns especialistas perceberam que essas nações também eram muito desiguais até o século 19. Isto é, a trajetória muda justamente no início dos anos 1900.
De acordo com essa corrente de pensamento, os choques da primeira metade do século 20 — como as duas grandes guerras e a crise de 1929 — destruíram aquelas sociedades como existiam até aquele momento, e, ao se reconstruírem, se reergueram em novas bases. “É muito importante, no argumento desses autores, observar que no pós-guerra foram construídos estados de bem-estar social, firmados por novas instituições que foram capazes de diminuir a desigualdade e de preservá-la em patamares muito mais baixos”, explica Fadiño. Dentre as instituições criadas, fortalecidas e mantidas a partir desses choques, estão a criação e valorização do salário mínimo, o papel dos sindicatos e o controle da economia via tributações do capital e da sua renda. “A partir do pós-guerra, foi observado um sistema tributário altamente progressivo, com o Estado tributando proporcionalmente muito mais os mais ricos do que os mais pobres, diminuindo, assim, a desigualdade”, resume.
De acordo com o pesquisador Sacchet, do Ipea, inclusive, o que diferencia o Brasil de outros países da América Latina que compartilham conosco o passado, mas não a desigualdade, é justamente a estrutura tributária. “A estrutura tributária do Brasil é uma das mais regressivas do mundo, por causa, principalmente, do alto peso dos impostos diretos. A alíquota líquida efetiva paga pelos mais pobres é bem maior do que a paga pelos mais ricos”, ressalta.
O peso no próprio PIB
A equação que soma o passado colonial a uma estrutura econômica que reforça a concentração de renda resulta na forte desigualdade que temos hoje. E a geração de riqueza, por si só, não impede que esse ciclo se quebre — e pode, inclusive, retroalimentá-lo.
Segundo Carla, da FGV, as concentrações de riqueza e renda afetam o crescimento econômico em várias dimensões. Como na própria estrutura educacional, porque, quanto mais sucateadas forem a educação e a saúde, menos opções as pessoas terão, a qualidade de vida piorará e crescerá a segregação. “Isso dificulta a inserção dessa população no próprio mercado de trabalho, além de aumentar a violência e impactar a qualidade de vida da população como um todo”, finaliza.
Acesse a matéria na íntegra aqui.
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