Editorial
30/06/2025Reforma federativa pode equilibrar desigualdades entre Estados
Juristas propõem redistribuição de competências e receitas para corrigir assimetrias regionais e fortalecer autonomia, promovendo um Brasil mais justo

A estrutura federativa do Brasil, moldada desde a transição do Império para a República, apresenta distorções históricas que comprometem a autonomia dos Estados e dificultam o desenvolvimento equilibrado entre as regiões. O debate dessa questão ocupou a reunião de junho do Conselho Superior de Direito (CSD) da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), presidido por Ives Gandra Martins.
Os juristas membros do CSD Adilson Abreu Dallari e Dircêo Torrecilhas Ramos – este último autor do artigo ‘Reengenharia do Federalismo’ –, se dispuseram a analisar profundamente o pacto federativo nacional, com base em critérios de estrutura formal, justiça social, disparidade orçamentária, equilíbrio territorial e representatividade.
Como resultado das ponderações, emerge a proposta de uma ampla reforma que considere as desigualdades entre os Estados para promover isonomia e autonomia. “É preciso criar assimetrias de direito, sejam temporárias ou permanentes, para corrigir as assimetrias de fato”, afirmou Ramos.
Uma Federação com raízes centralizadoras
Ao contrário de federações originadas pela união voluntária de unidades soberanas, como os Estados Unidos, o Brasil adotou modelo por segregação, a partir do desmembramento de um Estado unitário. Isso gerou uma Federação com forte viés centralizador, em que a União concentra competências excessivas, enquanto Estados e municípios convivem com limitações estruturais e administrativas.
“Nos Estados Unidos, as partes outorgaram poder ao comando central; no Brasil, ao contrário, o comando central é que distribui a autonomia”, descreve Dallari. Essa origem compromete a repartição equitativa de poder e recursos. “A Federação brasileira tem natureza centrífuga, o que enfraquece os entes e compromete a capacidade de autogestão”, explicou Ramos.
Competências desequilibradas, desafios ampliados
“A Constituição especifica de forma bastante detalhada os poderes da União, apresenta relativamente as competências do município – e ao Estado resta apenas uma competência residual”, comparou Dallari.
A centralização de competências na União, somada à autonomia fragilizada dos demais entes, cria entraves à eficiência administrativa e à governança democrática. Ramos defende uma reorganização criteriosa das competências, com base nos princípios da subsidiariedade e da proximidade entre o governo e o cidadão — o que implicaria fortalecer os Estados e racionalizar o número de municípios.
Quando o território vira obstáculo
A dimensão continental do Brasil e as profundas diferenças entre seus Estados reforçam o desequilíbrio entre os entes. Em seu artigo, Ramos aponta que a ausência de um redesenho territorial adequado compromete a funcionalidade do pacto federativo. “Estados com pouca população e grande extensão, como Amazonas ou Pará, enfrentam desafios logísticos que exigem compensações adequadas”, observa.
A proposta é reconfigurar limites e competências sem inflar a máquina pública, evitando a criação de novos entes e apostando na racionalização administrativa. “Como todos os Estados têm a mesma representação, os menores levam vantagem sobre os maiores, gerando desequilíbrio”, justificou Dallari.
Populações desiguais, carências evidentes
Por outro lado, o mecanismo da representação proporcional inverte a vantagem entre os Estados mais populosos e os menos habitados. A comparação entre São Paulo, com mais de 46 milhões de pessoas, e Roraima, com pouco mais de 500 mil, ilustra o abismo populacional e suas consequências fiscais e sociais.
“São Paulo tem praticamente um quarto da população brasileira e apenas 70 dos 513 deputados, ou seja, uma participação política e um poder de decisão praticamente nulos”, afirmou Gandra. Assim, as políticas de redistribuição devem considerar o tamanho da população e o grau de carência social, mas também a capacidade produtiva. “É fundamental corrigir distorções que sobrecarregam entes com menos capacidade de arrecadação, mas grandes responsabilidades públicas”, ressalta Ramos.
Justiça fiscal como base do equilíbrio
No Brasil, a ausência de critérios objetivos e o favorecimento político regional agravam a desigualdade e transformam o orçamento em instrumento de cabo de guerra entre os Estados. A Constituição de 1988 bem que criou mecanismos para tentar estabelecer as prioridades e promover a continuidade dos investimentos no planejamento orçamentário. “No entanto, ao longo do tempo esses mecanismos foram sendo desvirtuados por uma sucessão de emendas”, lamentou Dallari.
Nesse particular, Ramos propõe uma reengenharia financeira baseada na meritocracia federativa: redistribuir recursos considerando o potencial arrecadatório, os esforços de gestão e as condições geográficas e sociais de cada ente. Ele cita o exemplo suíço, onde a equalização financeira considera não apenas necessidades, mas também a capacidade de produção e arrecadação de cada cantão.
O peso dos obstáculos políticos
“A questão do federalismo brasileiro enfrenta um obstáculo inerente ao presidencialismo, que é a captura orçamentária com vistas à concentração de Poder pela União. No cenário político atual, o Brasil está sendo governado pela minoria – e a Reforma Tributária vai acentuar ainda mais essa tendência, no sentido de que vai prejudicar com a perda de receita os Estados mais produtivos”, alertou Gandra. Há o risco iminente da ruptura entre as unidades da Federação que produzem e as que compram, provocada pela concentração cada vez maior da autoridade central.
A reengenharia sugerida, no entanto, esbarra em um emaranhado de interesses: resistência de políticos, burocracia inchada, corrupção, uso indevido de recursos e desequilíbrio de representatividade no Congresso. Dentre as propostas, estão a redução do número de parlamentares, a revisão do sistema eleitoral e a limitação do número de municípios.
Caminho para um novo pacto federativo
A conclusão – tanto do artigo de Ramos quanto da última reunião do CSD – é clara: um federalismo funcional requer conhecimento profundo das realidades regionais, divisão racional de competências e uma ordem tributária justa. “A reengenharia não é ruptura, mas reconstrução do pacto federativo com base no equilíbrio das desigualdades”, defende Ramos.
Fica uma convocação à reflexão e à ação. O Brasil precisa superar um modelo que perpetua privilégios e desigualdades para avançar rumo a uma Federação eficiente, solidária e verdadeiramente democrática.