Conselho Superior de Direito
06/11/2018"Dignidade sob pressão", por Ives Gandra da Silva Martins
Para presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP e especialistas as ações anticorrupção têm ocorrido com imprudência
"Nada justifica hoje em dia a forma agressiva e humilhante a que se veem submetidos os eventuais suspeitos nas investigações em curso nas operações anticorrupção", escreve
(Arte: TUTU)
Por Ives Gandra da Silva Martins*
Um dia Ernest Hemingway (18991961), do alto de sua sabedoria de vida, afirmou que “a coragem é a dignidade sob pressão”. Pois é esta coragem, fruto da indignação conjuntamente percebida, que nos anima a manifestarmo-nos na defesa da cidadania brasileira.
A indignação que sentimos no sentido coletivo é por conta da forma imprudente como têm sido conduzidos recentemente alguns casos de investigação criminal no âmbito das operações policiais de combate à corrupção.
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Para não deixar dúvida, declaramos desde já o nosso irrestrito apoio ao mote de tais operações. Igualmente relevantes foram as medidas para pôr fim ao sentimento de impunidade para os crimes de colarinho branco, cometidos seja por autoridades, políticos ou empresários. Ninguém está acima da lei, assim como não acreditamos que haja cidadão acima de qualquer suspeita.
No entanto, é de se recordar que a investigação criminal é um instrumento legítimo de apuração de responsabilidades e de apoio à Justiça no julgamento regular das pessoas suspeitas, requerendo responsabilidade no seu trâmite. Deve ser conduzida com imparcialidade, impessoalidade e equilíbrio, para trazer à luz fatos e dados que conduzam a um julgamento justo.
Portanto nada justifica hoje em dia a forma agressiva e humilhante a que se veem submetidos os eventuais suspeitos nas investigações em curso nas operações anticorrupção.
Sem nem sequer ter conhecimento prévio de que existe uma investigação corrente sobre sua pessoa, são submetidos a uma ruidosa operação de busca e apreensão em suas residências e escritórios e, antes mesmo de se concluir tal operação, a imprensa já está informada em detalhes sobre a referida ação e daí se processa o linchamento moral do cidadão suspeito.
A regra deveria ser de absoluto sigilo na execução do mandado de busca e apreensão, pois a mera suspeita de envolvimento de uma pessoa no eventual crime praticado não pode se tornar um prejulgamento público antes de que provas materiais do referido crime sejam apreciadas em juízo. E se não tiver ocorrido o suposto crime? E se o suspeito for inocente? Como fica o dano moral ao cidadão que teve seu nome e sua honra postos à divulgação pública em situação tão vexatória?
Nesse contexto, muitas vezes destroem-se a carreira e a reputação de bons e honestos profissionais, prejudicam-se empresas que operam na legalidade, abalam-se as famílias e as amizades das pessoas suspeitas e, em casos extremos, leva-se, por vezes, ao suicídio de alguns. Assim ocorreu, recentemente, com o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Relembre-se: o artigo 37 da Constituição determina que os agentes do Estado atuem em observância aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade. Desses vetores axiológicos decorre a exigência de imparcialidade, segundo a qual a autoridade administrativa deve agir sem levar em conta quaisquer outros interesses que não o cumprimento fiel da lei e da Constituição. Isso significa que, na ausência de fortes indícios da conduta ilícita, o promotor não deveria acusar o suspeito.
Na prática, porém, ocorre o contrário. Há casos em que a autoridade pública age sem maior reflexão, acusa de forma temerária e permanece irresponsável pelos prejuízos causados a inocentes. O sistema jurídico deve criar mecanismos para que se responsabilizem os agentes públicos que atuem com parcialidade e, consequentemente, descumpram a Constituição.
É de se pedir equilíbrio, mesmo no caminho de continuidade do rigor e da justiça no processo de combate à corrupção. E hora de grandes mudanças no Brasil, inclusive no respeito às leis, às garantias e à cidadania.
*Ives Gandra Martins é presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP
Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 06 de novembro de 2018, em coautoria com Renato de Mello Jorge Silveira e Hamilton Dias de Souza.