Economia
12/02/2025Consumo compartilhado: plataformas de gigantes fazem parte da rotina de quem compra e vende produtos e serviços
Partilha ficou em segundo plano — preço e conveniência são os grandes motores da economia de plataforma, que deve chegar a novos setores
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Em um passado não muito distante, o dono de um restaurante que quisesse entregar refeições em domicílio precisava contratar entregadores e um responsável por atender o telefone. E quem tivesse uma casa na praia para onde só viajasse eventualmente, teria que colocar placas na propriedade ou anúncios em jornal para alugá-la de forma esporádica a estranhos. Mas, já há algum tempo, plataformas de gigantes como iFood, Airbnb e Uber fazem parte da rotina de quem compra e vende produtos e serviços. Contudo, nenhuma delas existia há meros 20 anos — a primeira a ser lançada foi o Airbnb, em março de 2007.
Essas empresas atuam em mercados diferentes, mas têm em comum a intermediação via tecnologia, que passou a promover o acesso a serviços e produtos por um tempo determinado, em vez de pela propriedade ou contratação de longo prazo. Essa maneira de consumir mudou também a forma de ouvir música, com os serviços de assinatura substituindo a compra de álbuns dos artistas. Convencionou-se chamar esse fenômeno de economia compartilhada, um setor em constante crescimento que tem transformado dinâmicas sociais e econômicas — há cinco anos, o Airbnb oferece mais quartos do que as quatro maiores redes hoteleiras do mundo somadas.
É difícil precisar o tamanho desse mercado. De acordo com um estudo da consultoria PwC com companhias de cinco grandes áreas, as empresas de compartilhamento movimentaram cerca de US$ 15 bilhões em 2013, 5,8% de seus respectivos mercados. Para 2025, a perspectiva é que movimentem US$ 335 bilhões, o equivalente a metade do faturamento de seus setores.
Com a explosão das cifras, cresceram também a atenção e os artigos acadêmicos sobre o tema. Embora não exista consenso, dois pesquisadores — Koen Frenken, do Instituto Copernicus de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Utrecht, na Holanda, e Juliet Schor, do Boston College — fizeram, em 2019, uma revisão bibliográfica e encontraram cinco fatores que definem a economia compartilhada: deve ser entre pares (peer to peer), sob demanda, facilitada pela Tecnologia da Informação (TI), sem transferência de propriedade e dar uso a produtos ou serviços com capacidade ociosa.
Características questionáveis
Seguindo esse padrão, serviços de streaming de músicas e filmes, como Spotify e Netflix, não entrariam na categoria da economia compartilhada, pois as trocas ocorrem entre grandes estúdios e pessoas comuns (não é peer to peer). Mas o relatório da PwC, por exemplo, inclui essas grandes empresas em suas contas, em contraponto aos negócios tradicionais de videolocadoras e de compra de CDs.
A falta de consenso segue em outras áreas, sobretudo quando se trata de aproveitar algo que está subutilizado. “Na maior parte dos casos, tornou-se uma atividade comercial como outras. Não se trata mais de dar uso a uma capacidade ociosa”, afirma José Rodrigues Fernandes, pesquisador no Centro de Empreendedorismo da Fundação Getulio Vargas (FGV), que trabalhou numa cooperativa de aluguel temporário de imóveis semelhante ao Airbnb, mas que tentava se manter fiel ao princípio de alugar apenas quartos ou imóveis ociosos, não permitindo que alguém alugasse um apartamento inteiro na mesma cidade onde morava, ou vários no mesmo município.
No entanto, para fazer o negócio crescer, a maior parte das plataformas não exige que haja, de fato, algum tipo de partilha ou carona, embora mantenham esse apelo nos discursos oficiais. “Na época, fizemos um estudo e observamos que mais de 50% dos apartamentos no Airbnb eram propriedade de pessoas que têm muitos apartamentos, ou mesmo de empresas. Funciona quase como um hotel difuso, com várias unidades espalhadas pelas cidades”, explica Fernandes.
Portanto, o pesquisador defende que outros termos, como “negócios mediados por tecnologia”, sejam atualmente mais adequados do que “economia compartilhada” para definir o modelo das grandes plataformas que unem as duas pontas, oferta e demanda.
Chamar de partilha o que é, na verdade, uma fonte primária de negócios e renda é “sharewhashing”, um termo que indica uma maquiagem — ou seja, que essa partilha está apenas na aparência. “Mesmo no Blablacar, o marketing ainda aposta na narrativa de que é um aplicativo de carona, mas quem usa sabe que os motoristas são profissionais. É diferente de alguém que, em um fim de semana, foi para Búzios e resolveu oferecer carona para conhecidos na volta”, pontua Karine Karam, professora de Comportamento do Consumidor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Segundo a professora, o que mudou foi que grandes players de tecnologia, aglomerando volumes de pessoas para oferecer e contratar serviços, viraram intermediários que faturam milhões. “As narrativas são para construir histórias de partilha, mas, num país com desigualdade social e falta de emprego, vira o meio de sobrevivência das pessoas”, ressalta. Pelo lado do usuário, a vantagem é também econômica. Em geral, fica mais barato chamar um carro de aplicativo do que um táxi e passar uns dias num apartamento de temporada do que num hotel. A partilha ficou em segundo plano — preço e conveniência são os grandes motores do crescimento da nova forma de consumir.
Parecer em vez de ter
Mesmo quando se trata de itens de luxo, a opção por alugar ou trocar, hoje facilitada por grandes portais, tem se mostrado uma saída para se ter acesso a algo sem gastar o necessário para a posse. “Apesar de muitos acharem que é uma forma de democratização, de flexibilização dos modelos de posse, a ideia de que posso usar uma bolsa de grife sem possuí-la está, na verdade, refletindo uma cultura em que parecer é mais importante do que ser”, enfatiza Karine. A professora lembra de uma cena do filme Sex and the City, de 2007, em que uma moça chega a uma entrevista de emprego para o cargo de secretária com uma bolsa Louis Vuitton. A mulher é contratada, mas a protagonista pergunta como ela, alguém que dividia apartamento, poderia ter comprado uma bolsa daquelas, e a jovem conta que alugou o acessório. “Pegar uma bolsa emprestada expressa um desejo de mobilidade social. É o chamado efeito trickle-down: grupos mais populares buscam status adotando vestuário de classes dominantes. Contudo, quando conseguem imitar, as classes mais altas mudam de comportamento para continuar se distinguindo”, detalha.
Estratégias para usar roupas caras, mesmo sem poder pagar por essas peças, são bem conhecidas de Karine. “Trabalhei com um grupo de donas de loja que identificaram, muitos anos atrás, um movimento de meninas que usavam roupas sem tirar a etiqueta. Elas chegavam a uma festa, suavam, sujavam e, depois, voltavam à loja para trocar ou devolver o item”, recorda. Com as redes sociais, esse movimento de parecer ser capaz de usar um item de luxo fica ainda mais fácil, porque bastam fotos com o look, que sequer deixam a roupa usada.
Movimento sem volta
Pessoas unirem-se para comprar conjuntamente um serviço ou produto não é uma novidade criada pelo avanço tecnológico. Esses encontros, porém, foram potencializados em escalas inimagináveis nas últimas décadas. “Pais de outras gerações reuniam-se para comprar material escolar em conjunto, ou fazer revezamento para levar os filhos para a escola. Mas isso era pelo boca a boca, numa escala que não afetava a economia geral. Nesse sentido, a grande novidade é mesmo a tecnologia”, afirma Fabio Pina, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
Portanto, se são as gerações mais novas a demonstrarem mais vontade de aderir à economia compartilhada, independentemente da definição, é porque são elas que têm essa forma de consumir disponível desde cedo. “Hoje, os jovens podem andar de carro sem comprar um. A tecnologia abriu possibilidades e permitiu a mudança de comportamento”, avalia o assessor.
Segundo Pina, o mais interessante é que as novas possibilidades não acabam, necessariamente, com os modelos anteriores — quem preferir, pode continuar vivendo apenas com a economia tradicional. “Ninguém impede alguém de usar uma máquina de escrever em vez do computador, mas, sem dúvida, essa pessoa terá menos oportunidades de trabalho”, exemplifica. Em geral, o conforto, a praticidade e o ganho de produtividade compensam a adesão às novidades. “Pelo meu celular, posso verificar como está o clima agora num local a 400 quilômetros daqui e decidir alugar uma casa para passar o fim de semana”, compara.
Entretanto, há transformações estruturais e legislativas que precisam ser realizadas para garantir os direitos tanto de quem consome quanto de quem trabalha. Não se trata, então, de tentativas de deter as mudanças, mas de adaptá-las da melhor maneira possível. “Estar em meio a uma novidade não é fácil, pois esta sempre carrega consequências. Há novas formas de trabalhar e novos tipos de trabalho. A legislação, por sua vez, tem um passo diferente, é mais lento”, observa Pina.
Um estudo sobre o tema, produzido recentemente pela FecomercioSP, alerta que, além dos riscos inerentes ao aumento de trabalhadores informais, a economia compartilhada também pode representar um perigo para o comércio tradicional. É preciso inovar para manter-se relevante. “Uma das principais estratégias que as empresas podem adotar é a incorporação de modelos híbridos, combinando a venda tradicional com serviços de compartilhamento ou aluguel. Essa abordagem pode ajudar as empresas a alcançarem consumidores que busquem flexibilidade e conveniência”, recomenda o documento.
E ao se vislumbrar o futuro, há perspectivas de expansão do modelo para outras áreas. “A economia compartilhada não se limitará aos setores que já conhecemos, como transporte, hospedagem e serviços de entrega. Há uma tendência crescente para o compartilhamento de recursos em áreas como Energia, Saúde e Educação”, aponta o relatório, citando o surgimento recente de plataformas que permitem o compartilhamento de energia solar entre vizinhos. Para quem estiver disposto a abraçar a mudança, o horizonte é de oportunidades.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.
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