Economia
28/10/2024Hábitos de consumo da geração Z impulsionam mercado de segunda mão, gerando empregos em ritmo mais forte
O consumo consciente também contribui para aumentar o ciclo de vida da mercadoria seminova de boa qualidade, que é vendida por um preço bem mais competitivo
Sabe aquela calça azul antiga, meio desbotada, que já não lhe cai tão bem? E aquele vestido, comprado para uma ocasião especial, que nunca mais saiu do armário para dar uma voltinha? Pois quem prioriza o consumo consciente, a sustentabilidade e a economia circular pode estar atrás de peças como essas nos milhares de brechós físicos e virtuais, um mercado que só cresce de olho no novo jeito de consumir — principalmente da geração Z, aqueles nascidos a partir de 1995.
Ao mesmo tempo, o impacto ao bolso também mudou os hábitos de consumo. Durante a pandemia, muitas pessoas buscaram novas fontes de renda, vendendo roupas, móveis e itens de decoração em plataformas online, brechós e antiquários. “O comércio de artigos usados veio para ficar, incentivado pela preocupação ambiental e pela maior durabilidade dos produtos”, afirma Karine Karam, professora de Pesquisa e Comportamento do Consumidor na Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-RJ). Ela acrescenta que a geração Z busca reduzir o desperdício, bem como o mercado de usados tem se adaptado com mais profissionalismo e novas estratégias.
Esse fenômeno já foi observado no exterior, e o Brasil deve seguir essa tendência. De acordo com dados da ThredUp, uma das maiores plataformas de revenda de roupas e calçados usados, o mercado mundial de segunda mão deve atingir US$ 350 bilhões até 2027, crescendo três vezes mais rápido que o de vestuário em geral. Nos Estados Unidos, 52% da população já compra roupas usadas, representando um item de segunda mão para cada novo vendido no varejo têxtil.
Ainda não há um estudo dessa magnitude no Brasil, mas, segundo dados do Sebrae, em 2023, havia 118.778 brechós em funcionamento no País, número que não abrange pontos de venda informais, costumeiramente presentes em varandas e garagens de casas em pequenas cidades e em bairros periféricos nos grandes centros urbanos.
Empregos de primeira mão
Fato é que o mercado de trabalho com carteira assinada, no setor, cresceu entre janeiro de 2020 e junho de 2024. “Nesse período, o comércio varejista de usados passou de 4.817 para 10.381 vínculos laborais, expansões de 115,5%, no Brasil, e 112%, no Estado de São Paulo — o maior crescimento entre as 35 categorias do varejo”, afirma Jaime Vasconcellos, economista da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e autor do estudo Evolução do Mercado de Trabalho do Varejo de Artigos Usados. A análise, que considerou apenas estabelecimentos devidamente regularizados, se baseou nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho. “O estudo reforça a tendência cada mais visível de que o mercado de artigos usados passa por uma trajetória mais acentuadas de consolidação no País”, afirma Vasconcellos.
O economista acredita que as oportunidades são positivas tanto para o empresário do setor quanto para o consumidor. “Há um aumento do ciclo de vida da mercadoria seminova de boa qualidade, que pode ser adquirida por um preço mais competitivo. Ademais, permite ao cliente suprir as necessidades temporárias, como no caso de roupas infantis”, exemplifica.
Usados na web
Ainda que a maioria dos clientes de itens usados ainda prefira comprar em lojas físicas, há exceções, como o Enjoei. Criada em 2009 como um blog pelos cariocas Ana Luiza Mclaren e Tiê Lima, a plataforma foi pioneira em compra e venda online. Em novembro de 2020, o Enjoei se tornou a primeira empresa de usados a abrir capital na B3, captando R$ 1,3 bilhão e se tornando o maior brechó online do Brasil.
O modelo de negócio funciona da seguinte forma: por meio de um cadastro, o cliente cria um anúncio com fotos e descrição dos produtos (vestuário, calçados, eletrônicos, móveis e decoração). A cada venda, a empresa cobra uma comissão de 18% e uma tarifa fixa, que vai de R$ 2,50, para vendas de até R$ 15, a R$ 27,50, para operações acima de R$ 501.
Segundo a assessoria de imprensa do Enjoei, mais de 4 milhões de usuários já anunciaram 84,6 milhões de produtos na plataforma e mais de 4,4 milhões de consumidores já compraram por meio do site ou aplicativo. Em 2023, a empresa comprou 25% de participação na Cresci e Perdi, rede de franquias focada em roupas e acessórios infantis que está presente em mais de 390 cidades em 24 Estados. Após consolidar a liderança no ambiente virtual, o próximo passo do Enjoei é apostar na expansão de lojas físicas franqueadas. Já há lojas em São Paulo — onde é possível também vender itens, como nos brechós tradicionais —, e a companhia prevê a abertura de 300 unidades nos próximos anos.
Segundo Heloisa Omine, professora de Varejo na ESPM-SP, a expansão do ramo de artigos de segunda mão deve trazer mudanças no comércio varejista em geral, como no caso dos outlets, que também abrem espaços para itens usados. “Mas é fundamental que haja uma curadoria rigorosa para que a proposta tenha validade desde o começo de um projeto”, afirma a professora.
Heloisa ressalta que o hábito da compra de itens usados, principalmente em vestuário, reflete um posicionamento do consumidor, independentemente do valor da mercadoria. “Alguém que compra uma peça de brechó no exterior deseja se apresentar à sociedade como uma pessoa que tem acesso a locais diferenciados. No Brasil, a curadoria deve priorizar o estilo vintage, associando o ato da compra a uma postura de engajamento nas questões ambientais”, afirma.
Para criar um brechó, seja online, seja em loja física, é imprescindível trabalhar o público por meio das redes sociais, especialmente com vídeos no TikTok, a plataforma mais acessada pela geração Z. “É essa geração que recomenda e replica as mensagens aos seus círculos sociais”, diz Heloisa. Recentemente, a plataforma lançou, no Brasil, a TikTok Shop, que permite a venda de produtos por vídeos e lives e pela guia Vitrine, um marketplace próprio dos usuários. Por ser uma novidade, ainda não há dados disponíveis sobre a iniciativa.
Por consignação
Com previsão de encerrar 2024 com 180 lojas franqueadas, o Peça Rara Brechó adotou um modelo de vendas consignadas, com curadoria rigorosa na qualidade e na conservação das peças. “A qualidade é a chave do nosso negócio. No início, alguns clientes perguntavam onde ficava a seção de roupas usadas”, relembra Bruna Vasconi, CEO e fundadora da rede, que começou em 2017, em Brasília. A organização no fluxo de mercadorias e o controle de estoque também são fundamentais, acrescenta a empresária.
Bruna lembra que, à época da fundação do Peça Rara, havia apenas um brechó na cidade, desorganizado e sem qualquer curadoria. A CEO afirma que entender o público em cada região é fundamental. “A preocupação com o estilo vintage ocorre em grandes cidades, como Rio e São Paulo. Em cidades mais novas, como Palmas, no Tocantins, os clientes valorizam outros aspectos”, compara.
A expansão da rede veio no fim de 2019 e decolou no pós-pandemia, o que resultou na entrada da atriz Deborah Secco e do empresário José Carlos Semenzato, do Grupo SMZTO, no negócio, em 2023. No ano passado, o faturamento foi de R$ 156 milhões, com 154 lojas abertas, 2,7 milhões de peças vendidas, 250 mil fornecedores ativos (clientes que revendem os artigos) e 4 milhões de itens cadastrados.
Hoje, segundo Bruna, a rede conta com cerca de 1,1 mil colaboradores. “O tamanho médio de cada loja é de 300 metros quadrados, com cerca de dez pessoas por loja. Priorizamos a contratação de mulheres acima de 60 anos, tanto aposentadas como pessoas desempregadas alijadas do mercado de trabalho”, destaca. Nos próximos meses, a rede pretende diversificar a oferta para itens de decoração e móveis. Hoje, a Peça Rara já dispõe de duas lojas exclusivas para móveis em Belo Horizonte, em Minas Gerais.