Economia
24/10/2024Modernização do Estado passa por mais presença da Inteligência Artificial
Para especialistas reunidos pelos conselhos de Economia Digital e Inovação e Superior de Direito, mudança cultural e capacitação são primordiais para a incorporação eficaz da tecnologia na gestão pública
A Inteligência Artificial (IA) pode ser um agente efetivo no processo de modernização estatal, aprimorando processos e garantindo mais agilidade nos serviços prestados à população. O uso da ferramenta tem o potencial de revolucionar a administração pública de uma maneira nunca vista. “Nós vivemos uma transformação econômico-social-tecnológica profunda, da mesma dimensão da Revolução Industrial”, observa o presidente do Conselho de Economia Digital e Inovação da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), Andriei Gutierrez. O assunto foi tema de reunião conjunta entre o órgão e o Conselho Superior de Direito da Entidade, na última segunda-feira (21).
É notório que a Inteligência Artificial pode trazer inúmeros benefícios à gestão estatal, como melhorias na eficiência, na produtividade e na desburocratização de processos administrativos, além de mais transparência. A ferramenta também aprimora a tomada de decisões governamentais mediante a capacidade de análise de grande volume de dados, identificação de padrões e soluções baseadas em evidências.
Fábio Correa Xavier, diretor do Departamento de Tecnologia da Informação (DTI) do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), que participou da reunião na FecomercioSP, exemplifica como a ferramenta pode ser relevante, por exemplo, na fiscalização de recursos públicos. De acordo com ele, a IA permite auditorias e fiscalizações automatizadas, o que possibilita a detecção de dados financeiros e a identificação de irregularidades e fraudes, entre outras possibilidades. “Vamos aumentar, em muito, a nossa capacidade de análise, a nossa capacidade de auditar a aplicação dos recursos públicos, que é a missão constitucional do Tribunal de Contas”, explica.
Xavier afirma que a ferramenta será importante para melhorar outros serviços prestados pelo Estado, como rotas de transporte escolar e otimização da coleta de lixo, ao gerar economias de combustível e minimizar o tempo de espera da população. Outra possibilidade, ainda, é o uso para prevenção e resposta a incidentes, como desastres naturais.
Contudo, o especialista destaca que o sucesso da implantação da tecnologia depende de processos eficientes, que incluam preocupações com a governança dos dados e a ética, e de pessoas que possam trabalhar de forma adequada com a ferramenta. Ele pontua que esse último aspecto é um dos mais desafiadores. “Qualquer solução, para ser efetiva, tem de se basear nesses três aspectos: tecnologia, processos e pessoas. E pessoas, geralmente, é a parte mais negligenciada.”
Atualmente, o TCE-SP conta com uma Assistente Natural de Inteligência Artificial (Ania), baseada na mesma tecnologia do ChatGPT. Dentre outras soluções, a Ania simplifica e acelera a análise de documentos em formato PDF, como leis, normativos, ordens de serviços e dados. Além da assistente, o TCE-SP também implantou a AniaChat, uma espécie de ChatGPT do próprio Tribunal de Contas, garantindo privacidade e evitando que os dados sejam utilizados para criar outros modelos.
Em agosto deste ano, Xavier foi premiado como um dos dez executivos de maior destaque em IA do ano. A indicação foi resultado justamente da implementação da Ania no órgão.
Modernização do Estado: foco no cidadão
Camila Cristina Murta, advogada pós-graduada em Direito Constitucional e Administrativo, líder do Grupo de Trabalho (GT) de Compras Públicas da Associação Brasileira de Software (Abes), reforça a importância da mudança de cultura e mentalidade para que a IA possa ser empregada com mais assertividade no serviço público. “Com resistência, nós não temos mudança”, enfatiza. Camila acredita que a transformação estatal depende, primordialmente, de três aspectos: novas tecnologias, mudança cultural e foco no cidadão.
Em relação ao último aspecto, ela reforça que o objetivo do uso da tecnologia nos serviços públicos é melhorar a experiência da população e fazer com que esta seja plenamente atendida. Atualmente, a plataforma Gov.br, por exemplo, permite o acesso a mais de 4 mil serviços. Mas dados indicam que 28 milhões de pessoas acima de 18 anos ainda estão excluídas digitalmente no País.
“E, aí, eu pergunto a vocês: um governo digital eficiente é balizado na quantidade de tecnologia, na quantidade de investimento em tecnologia que ele faz? Não, um governo digital é considerado eficiente na quantidade de resultado que entrega para o seu cliente, o cidadão. Não adianta ter muito investimento em tecnologia se esta não conversar com o cidadão”, afirma Camila.
A especialista ainda ressalta a importância de se adotar um processo de contratação inteligente, que priorize a melhor relação entre custo e benefício, e não apenas o menor preço. Ela também mencionou ser fundamental considerar o impacto social da contratação, o que só será possível quando houver uma preocupação com a mensuração dos resultados. “Quando fazemos uma política pública é porque foi identificada uma determinada necessidade, mas depois eu não verifico se essa política pública está, de fato, chegando e quem deveria. E eu preciso fazer essa mensuração para qualificar essa contratação como uma transformação digital efetiva e, para que isso aconteça, o que que eu preciso? eu preciso de um ambiente regulatório favorável”, pontua.
IA também traz novos desafios aos gestores públicos
Ives Gandra Martins, jurista e presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP, comenta que a IA coloca diante da sociedade grandes oportunidades, mas também desafios importantes. “A velocidade [da transformação digital] é enorme e é evidente que as oportunidades são muito grandes. Mas, e os riscos?” questiona.
Ele expressa preocupação com a relativização da ética em muitas situações, especialmente com o uso mal-intencionado da tecnologia. “Como enfrentaremos o controle, não dos governos ou da lei, mas da marginalidade?”, provocou, referindo-se à velocidade da transformação digital ao mesmo tempo em que há, na sua avaliação, um “relaxamento ético” mundial.
Convidado para falar sobre as aplicações da ferramenta no Judiciário, Mairan Maia Júnior, desembargador do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF3) de São Paulo, traçou um panorama sobre a Tecnologia da Informação (TI) nos tribunais brasileiros, além dos riscos da IA gerativa e como reduzi-los. De acordo com ele, a IA é uma realidade na maioria dos fóruns — um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que mais de 66% dos tribunais nacionais fazem uso da ferramenta.
Outro dado relevante é que, ainda de acordo com o CNJ, há mais de 147 modelos de solução da tecnologia desenvolvida pelos próprios tribunais com o uso, principalmente, de sistemas de dados abertos. Os fóruns se dividem, basicamente, em dois grupos: os que utilizam sistemas de outros tribunais e os que contratam empresas privadas para fornecer softwares de processos judiciais eletrônicos.
Dentre os benefícios da IA nas cortes, destacam-se a automação de tarefas repetitivas e a liberação dos juízes para atividades mais complexas, como triagem de documentos e acompanhamento de prazos. A tecnologia também pode funcionar como um banco de dados para consulta de decisões baseadas em jurisprudências, acelerando processos e melhorando a eficiência e o acesso à Justiça.
No entanto, Maia Júnior alerta para os riscos, como o uso de bases de dados abertas, que ao se tornarem públicas, podem ser usadas para o treinamento da Inteligência Artificial, o que pode reduzir o controle sobre a utilização dos dados e gerar erros, como criar jurisprudências ou leis inexistentes. Além disso, ao analisar documentos, o algoritmo não verifica a veracidade das informações. O Judiciário, segundo ele, precisa mapear esses riscos da IA generativa.
O desembargador também apontou outras questões a serem enfrentadas, como falta de uma política de governança, transparência, definição da margem de erro com a qual se irá trabalhar e uso de fontes não confiáveis no treinamento dos modelos. “Se pode verificar que a utilização da Inteligência Artificial generativa é bem-vinda, é necessária, mas tem que se atentar para toda essa série de riscos, porque o que está em jogo é o direito de cada um que se vale do Poder Judiciário e a própria imagem e confiabilidade do Poder Judiciário”, conclui.
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