Editorial
22/09/2017O contrabando, por Ives Gandra da Silva Martins
Presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP discute “indústria do contrabando” em artigo
"O combate maior à “indústria da descompetitividade”, que prejudica o fisco e as empresas, é particularmente difícil no Brasil, país com fronteiras continentais e sem condições reais de controlá-las", explica Gandra
(Arte/Banco de Imagens)
Por Ives Gandra Martins
Comenta-se que a “indústria do contrabando” acarreta prejuízo de aproximadamente R$100 bilhões por ano ao país, prejudicando internamente a indústria nacional e estimulando a criminalidade lucrativa, sem riscos maiores. O combate maior à “indústria da descompetitividade”, que prejudica o fisco e as empresas, é particularmente difícil no Brasil, país com fronteiras continentais e sem condições reais de controlá-las, levando em consideração que muitos de nossos vizinhos também encontram dificuldades de dar combate à marginalidade dos que atuam nessa espécie de delito, nos próprios territórios.
Acrescente-se a extensa área litorânea, em que o controle e a fiscalização pela guarda marítima se tornam complexos e insuficientes. Temos, por um lado, uma crônica deficiência na Polícia Federal, não em nível da qualidade dos quadros — hoje dos melhores do mundo —, mas na quantidade dos elementos, visto que são 1.700 delegados atuando no país, com mais de 570 vagas não preenchidas.
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Por outro lado, a lamentável chaga que atingiu os escalões do poder nos governos anteriores, gerando o maior escândalo de corrupção da história do mundo, tem obrigado parcela dos delegados da Polícia Federal a se deslocar para investigações e combate à deletéria corrosão da moral pública, com o que a cobertura das fronteiras se torna mais difícil. As próprias Forças Armadas, que têm parcela dos contingentes nas fronteiras, contam com números insuficientes, pois, para 200 milhões de brasileiros, são 330 mil militares, dos quais 220 mil no Exército, inclusive com reservistas, 55 mil na Aeronáutica e 55 mil na Marinha.
É bem verdade que, com o sucesso de lançamento de recente satélite brasileiro nas Guianas, o monitoramento do território nacional será muito melhor, com abrangência de toda a sua extensão. Mesmo assim, estamos longe de atingir o nível que os países mais desenvolvidos e de extensão territorial semelhante têm. O controle faz-se também via Polícias Civil e Militar, no que concerne ao combate ao crime interno, mas que atuam fundamentalmente na circulação dos produtos criminosamente ingressados no território nacional.
A participação da Receita Federal é relevante, mas sofre das mesmas insuficiências de quadros necessários para conter o mal, visto que a maioria de seus servidores está dedicada ao controle dos tributos incidentes sobre o patrimônio, renda e circulação de bens e serviços. O certo, todavia, é que a luta contra o contrabando, embora se tenha aprofundado nos últimos tempos, carece ainda de um sistema eficiente, capaz de detectar o crime em sua origem, isto é, no ingresso do produto contrabandeado no país.
Nessa linha, o contrabando de cigarros é o mais lucrativo, pois se trata de um produto de fácil transporte e de alta tributação. É de lembrar também que o roubo de cargas de cigarros é enorme por tais delituosos benefícios. Muitas companhias de seguro se negam a segurar essas mercadorias. É que, nos cigarros, o IPI ultrapassa em muito o valor do
produto, tornando o contrabando e o roubo atividades criminosas particularmente atrativas. As penas de descaminho, penal e tributariamente mais graves que as da sonegação clássica, dolosa ou culposa, ainda são incapazes de atemorizar os contrabandistas, que, como os narcotraficantes, usufruem de uma rede de facínoras espalhada pelo país.
O interessante é que amais tradicional forma de tributação, a mais clássica, a mais antiga, é a de fronteira, desde os tempos primeiros da História. No Novo testamento, Cristo contesta a cobrança de tributos sobre os naturais da terra, não sobre os estrangeiros e a circulação de seus produtos, mas, para não escandalizar, fez um milagre: Pedro pescou um peixe que tinha na boca moeda de especial valor para pagar o tributo para os dois. A carga tributária, à época, era menor, e Cristo precisou de um milagre para pagar os tributos. Nós, no Brasil, sufocados por uma carga esmagadora, infelizmente não sabemos fazer milagres para suportar o escorchante nível de tributos.
Na própria Idade Média, quando as feiras e o comércio entre feudos eram comuns e os reinos, fracos, com senhores feudais fortes — menos em Portugal —, a tributação sobre a circulação era a mais rentável, pois, de rigor, os nobres detentores de grandes propriedades não pagavam tributos e eram sustentados pelos tributos dos servos. Não sem razão, a expressão “escravos da gleba” caracterizava esse tipo de “confisco real" ou “confisco pela nobreza”, próprios da época.
Sendo, pois, tal forma de tributação a mais antiga, a primeira a ser punida criminalmente, inclusive no país—a criminalização por sonegação é posterior à por descaminho e à por contrabando —, vê-se que seu combate vem de priscas eras e, apesar de todas as fórmulas aperfeiçoadas para o controle, ainda constitui fonte importante de renda para a criminalidade, devendo ser combatida sem tréguas.
À medida, todavia, que avança a tecnologia — e o controle via satélite passa a ser mais efetivo e abrangente —, creio que um passo importante seja dado para reduzir essa chaga da descompetitividade, que o crime organizado no país termina por criar. Tenhamos esperança nos novos métodos e no avanço tecnológico de combate ao contrabando.
* Ives Gandra Martins é presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP
Artigo originalmente publicado no jornal Correio Braziliense, em 22 de setembro de 2017
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