Editorial
29/05/2025O normativismo brasileiro em 10 tópicos: origem histórica, implicações e possíveis soluções
O excesso de leis e normas que cria um nó legal e amarra o desenvolvimento do Brasil foi pauta da última reunião do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP

As funções do Estado se encontram em xeque, nos âmbitos Legislativo, Executivo, Judiciário, diante do excesso de normas verificado no Brasil. São, literalmente, milhares de leis. Esse foi o tema central da reunião de maio do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), presidido por Ives Gandra Martins. O chamado normativismo brasileiro foi escrutinado por Juliana Bastos e Pedro Simon, membros do conselho, em uma apresentação que mapeou as causas e as consequências do problema, além de oferecer possíveis soluções.
“A uma Constituição que já nasceu analítica, foram acrescentadas 135 emendas, 15.134 leis ordinárias federais, 200 leis complementares federais, e mais de 6 mil medidas provisórias editadas desde 1988 – parte destas já convertidas em leis ordinárias”, enumera Juliana. Isso sem nem mencionar as demais espécies normativas: estaduais, municipais e decretos legislativos. “Há atualmente 41.209 Projetos de Lei (PLs) em tramitação, 2.437 deles propostos só nos primeiros meses de 2025”, completa Simon.
Trata-se, portanto, de uma infinidade de regras com textos muitas vezes obscuros, inconsistentes, repetitivos e até mesmo contraditórios. Esse emaranhado técnico-jurídico não é apenas um problema do aplicador de direito; é também um problema de cidadania, já que não se pode deixar de cumprir as normas por desconhecimento. Mas, antes de tudo, este labirinto legal é um reflexo de aspectos culturais do País, com origens ancestrais.
Raízes ancestrais
O normativismo é um traço cultural brasileiro desde o período colonial e carrega forte influência portuguesa. De cultura notadamente cartorial, Portugal trouxe para a colônia sul-americana as normas vigentes na Europa e criou ainda uma série de outras, por meio das quais exercia o controle e impunha a dominação sobre o território tão distante. Do colonizador foi herdada também a adoção do civil law, em que se privilegia a interpretação do juiz sobre a lei escrita, em detrimento do common law, mais baseado nos precedentes judiciais.
Democracia em risco constante
O cacoete do intervencionismo estatal foi primeiro herdado e, depois, reforçado pelas ditaduras. A frequente alternância entre os períodos autoritários e democráticos também contribuiu para a cristalização da insegurança institucional na essência do brasileiro, tanto em nível cultural quanto emocional. A constante busca por confiabilidade legal favorece a disposição para criar regras sobre cada aspecto da convivência em sociedade.
Onde o fio do bigode não tem vez
O ponto anterior nos traz a este: o Brasil é o País onde tudo tem que estar por escrito. A sociedade busca garantias na letra fria da lei, mas encontra o inverso: na ânsia de prever tudo em seus mínimos detalhes, acaba-se criando contradições e provocando insegurança jurídica. A isso, soma-se a própria natureza da constituição analítica, que leva à rigidez e à necessidade de constante atualização ao longo do tempo.
Leis: quantidade x qualidade
Um dos principais critérios de avaliação da atividade parlamentar é a produção legislativa, ou seja, valoriza-se o número de leis propostas, em detrimento de sua pertinência. Premiações e rankings de congressistas misturam os conceitos de qualidade e quantidade e o resultado é uma infinidade de leis de baixa tecnicidade. Essa confusão de conceitos se estende também à educação: o Brasil é o líder mundial em número de faculdades de Direito, com um total maior que a soma de todas as universidades da área de todos os outros países.
Atropelamento de competências
O Brasil subverte o princípio da subsidiariedade, o qual estabelece que as decisões sejam tomadas pela menor e mais competente autoridade, exercendo o federalismo de cabeça para baixo: da União, para o Estado e só então para o Município. Com isso, o Legislativo, já descredibilizado pela quantidade de leis absurdas, inócuas ou contraditórias que produz, se enfraquece ainda mais, o que leva a um Executivo abusivo, que outorga leis por meio de Medidas Provisórias (MPs), e a um Judiciário disforme, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa sempre dar a última palavra.








Supremocracia
O círculo vicioso das competências invertidas acaba acentuando a tendência do STF a um super protagonismo, porque é chamado a decidir sobre todas as questões do cotidiano. Só em 2022, por exemplo, o Supremo proferiu 89.951 decisões, o que dá uma média de 45 processos por ministro por dia. Destas, quase 86% foram feitas de forma monocrática. Para efeito de comparação, a corte equivalente no Reino Unido julgou 56 processos dos 250 recebidos e na Alemanha foram 413 julgados de 4.968 recebidos. Quem julga muito, acaba julgando mal.
Custo-Brasil e retrabalho
A consequência desse quadro é uma flagrante insegurança jurídica, que leva à desconfiança e à fuga de investimentos, traduzidos pelo chamado custo-Brasil. Entre os 190 países avaliados pelo ranking Doing Business, do Banco Mundial, que avalia os melhores mercados, o Brasil ocupa a 124ª posição, atrás de Uganda, Gana e Senegal. Outra sequela da doença normativista, é a constante necessidade de retrabalho, com decisões tão grandes e fundamentais quanto a Reforma da Previdência, que trancam a pauta do Congresso por meses a fio, já nascendo praticamente obsoletas.
Sociedade participativa
Qualquer princípio de solução de um problema tão intrincado quanto esse começa necessariamente a partir do desejo popular e da participação ativa da sociedade civil. É preciso que a população e o setor produtivo unam forças, exijam, cobrem e direcionem a tal vontade política. Enfim, deve-se compreender que o engajamento na vida cívica não pode ser apenas uma vez a cada dois anos, durante o período eleitoral, mas que o monitoramento deve ser ininterrupto.
Revogaço
A medida mais simples capaz de começar a dissipar a névoa legal que turva o horizonte é promover uma simplificação das leis, compilando temas que se sobrepõem e revogando o excesso. No entanto, problemas estruturais requerem soluções estruturais e só uma ampla reforma política seria capaz de ajustar o funcionamento do parlamento. Diante do gigantismo impeditivo dessa tarefa, uma revisão do federalismo, que concedesse mais autonomia a estados e municípios, já garantiria mais estabilidade.
Fim do ordenamento constitucional confuso
O Direito prevê dois tipos de controle de constitucionalidade, ou seja, de decisão sobre a constitucionalidade das leis e normas: o modelo difuso, ou norte-americano, em que quaisquer juízes e tribunais decidem; e o modelo concentrado, ou europeu, em que apenas juízes e tribunais constitucionais decidem. Já o modelo brasileiro é o confuso, em que ora funciona de um jeito, ora de outro. “Assim, por fim, para resolver a questão do avanço do STF sobre tudo que envolve o dia a dia da vida pública é fundamental redesenhar e garantir a separação entre a jurisdição constitucional, que cabe ao Supremo, e a jurisdição ordinária, de competência das demais instâncias”, concluiu Gandra Martins.