Editorial
17/04/2017Para Paulo Delgado, é preciso ter atenção a atores cujos interesses estão desconectados do que causa o bem-estar da humanidade
"De tempos em tempos, o poder é tomado por figuras que conduzem seus povos para uma vida pior", diz o copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP
Segundo Paulo Delgado, o sofrimento humano deveria ser "o limiar do poder da autoridade"
(Freepik)
Por Paulo Delgado
“Um canteiro ajardinado, ou saber que alguma vida respirou melhor porque você viveu — isso é ter sido bem-sucedido”. Domingo de Páscoa. O mundo é confuso e sofre, todavia, os seres humanos deveríam se considerar tecnicamente felizes. Água tratada, vacina e antibiótico fizeram a vida melhor. Mas existem coisas sendo chamadas por nomes que de fato não são. O homem é sua própria doença e, como ovo de Páscoa escondido por adultos para crianças, peço licença para arriscar. A ideologia oferece ao jovem boa receita para a escolha que quer fazer, mas não serve para compreender do que precisa para viver.
Para "entregar” um mundo um pouco melhor, a política precisa se dar conta de que a zombaria incita à violência. Seja por ver a morte de uma criança saudável, ou a ONU insistir que aos 60 anos somos velhos e devemos nos aposentar, é fundamental observar o que se passa na cabeça de quem manda no mundo. Atenção aos maus equilíbrios e a predominância de atores com interesses desconectados do que causa o bem-estar da humanidade. Ninguém sabe em que instante a pólvora se oferece ao fogo.
Deslumbrado para além de qualquer remediação, Donald Trump arrastou o presidente chinês para um resort de sua propriedade. Ao que tudo indica, Xi Jinping foi fisgado. Fascinado com relação a Ivanka, filha do seu igual americano, Xi vislumbrou novos negócios Pequim-Washington. A nova-iorquina revista The New Yorker arrepiou desconfortável. E vendo um destino precário para a união EUA-Trump, brindou seus leitores com um preconceito: é perturbador que a jovem loira apareça como modelo de feminismo para toda uma geração de mulheres chinesas. A esquerda anda perdida com a retórica que brota doTwitter!
É cada vez mais ponto pacífico que Donald Trump tirou a presidência dos EUA da seara da análise de risco para o campo da incerteza. Com relação à China, meia incerteza. Pequim é adulta e honra a história milenar e sofrida de seu povo. Um confortável Xi Jinping já se prepara para “perder" no jogo de pingue-pongue que se inicia. Já em relação a seus dois amigos hiperativos, existe um ponto em que o risco de conflito pode separar os gigantes. Demagogos não conseguem desejar o mínimo possível. Logo, é difícil que as personalidades de Trump e Kim Jong-un consigam jogar outro jogo que não o da guerra. Pode acabar o espaço para a manutenção do frágil equilíbrio na relação entre Coréia do Norte e EUA. Como acabou com a Síria.
A milhares de quilômetros dali, se não envolverem o Egito, todos os problemas do mundo árabe são passíveis de serem regionalizados. Por isso o assassinato de pelo menos 45 cristãos no domingo passado, seguido do estabelecimento de estado de emergência no país do presidente Al-Sisi, pode tragar para o abismo o país que serve de centro de gravidade do diálogo na região. Uma piora na realidade egípcia aumenta a pressão sobre a fronteira da União Européia. Vem, aí, uma vida mais dura para quem acredita que a humanidade combina melhor com liberdade e democracia.
Ao tocar nesse ponto, chegamos a George Soros, uma das figuras interessantes do mundo atual. Controvertido bilionário, a ponto de ser ao mesmo tempo xingado e consagrado por pessoas que se opõem ao capitalismo, Soros é um caso extremo de homem de negócios que ganha muito dinheiro com coisas que ele mesmo critica. Espécie de personificação da ideia de que, para mudar o jogo, você precisa aprender suas regras. E triunfar de acordo com elas. Seu principal playground experimental é a Hungria, onde nasceu. E de tanto ajudar com seu dinheiro a inovação no país minou os propósitos do regime comunista, que repele gestos de consolo.
Nos anos 1980, Soros contava entre seus bolsistas com um jovem advogado chamado Viktor Orban. A aposta de Soros começou acertada, mas hoje aparenta sair pela culatra. Desde 2010, Orban é o primeiro-ministro da Hungria. Seu governo é um dos mais reacionários da Europa. Entre suas muitas ações controvertidas, existe a de proibir a Universidade da Europa Central, a Harvard que Soros mantém em Budapeste. Soros quer ser lembrado como grande patrocinador de uma sociedade aberta, ideologia construída sobre as idéias de Karl Popper. Ironia do destino. Preocupe-se com a França de Le Pen, a extrema-direita alemã, mas é na Hungria que a política devoradora de idéias corre solta.
De tempos em tempos, o poder é tomado por figuras que conduzem seus povos para uma vida pior, desconectada da realidade. Fervem inventivas ideologias lisonjeando as necessidades do povo. Deveria ser o sofrimento humano o limiar do poder da autoridade. Em relação a qualquer outra coisa, tudo é movimento, não há a última palavra.
*Paulo Delgado é copresidente do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP.
Artigo publicado no jornal Corrreio Braziliense no dia 16 de abril de 2017.
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