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Legislação

O cuidado no centro do debate sobre o futuro do trabalho

Envelhecimento da população, informalidade, judicialização e questões de gênero e raça tornam urgente a estruturação da atividade dos cuidados, que representa cerca de um quarto da força laboral no Brasil

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O cuidado no centro do debate sobre o futuro do trabalho

O envelhecimento acelerado da população brasileira — com o número de idosos crescendo 57,4% nos últimos 12 anos e chegando a 10,9% desse total — pressiona ainda mais a discussão sobre o cuidado no País. Em um setor historicamente feminino e negro, a maioria das trabalhadoras enfrenta informalidade e falta de proteção. Segundo Nadya Araujo Guimarães, socióloga e professora na Universidade de São Paulo (USP), este não é um problema apenas para entender o envelhecimento, mas também as questões laborais e as transformações que a sociedade brasileira precisa lidar.

“Discutir a regulação do mercado de trabalho nos cuidados significa repensar direitos, proteção social e oportunidades para as mulheres, além de refletir sobre a própria organização da sociedade diante de mudanças tão profundas. Não podemos prescindir desse setor, mas, ao mesmo tempo, não estamos falando dele”, alertou, durante o seminário A Economia dos Cuidados: a Situação do Brasil, realizado pelo Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), no fim de junho. 

Confira, a seguir, os destaques da apresentação da socióloga.

O peso dos cuidados no mercado de trabalho

Um dos destaques do debate foi a dimensão da atividade dos cuidados nas estatísticas nacionais. De acordo com Nadya, hoje, o setor de Serviços corresponde a metade dos postos de trabalho do País. Contudo, há uma parcela pouco visível, mas muito significativa, dentro da economia que corresponde às ocupações de cuidado. “Cerca de 25% do mercado de trabalho brasileiro são compostos por ocupações ligadas ao cuidado, o que equivale a um quarto da população ativa envolvida em variadas funções de cuidado direto ou indireto.” 

Essa proporção, segundo ela, tem crescido de forma célere e persistente, mesmo com as adversidades provocadas pela pandemia e pela crise econômica da última década, o que indica a relevância desse segmento para o mercado de trabalho.

Setor ‘imune’ a crises: a representação do avanço das ocupações do cuidado desde 2012

  • A faixa verde, o “núcleo duro”, retrata o crescimento do cuidado domiciliar e remunerado de idosos (importante notar que esse segmento específico tem uma dinâmica distinta do restante no mercado, muito maior do que antes da pandemia).
  • A faixa rosa mostra outras ocupações indiretamente ligadas ao cuidado, como as trabalhadoras domésticas de serviços gerais, cuja função saiu da pandemia menor do que era.
  • A faixa amarela indica as ocupações fora do mercado do cuidado. 

Invisibilidade e reconhecimento tardio da atividade

Apesar dessa importância numérica, por muito tempo, o cuidado foi invisível como atividade laboral, mesmo com papel social central. A ocupação do cuidador só passou a ser reconhecida amplamente no discurso público nas últimas décadas. Durante o evento, Nadya frisou que, em pesquisas na base de dados do jornal O Estado de S. Paulo, mais longevo do País, “palavras como cuidador ou cuidadora eram praticamente inexistentes até os anos 1990, e só recentemente a sociedade passou a nomear quem provê esse trabalho tão fundamental”.

Um fenômeno mundial

Atualmente, tanto em países do Norte quanto do Sul globais, as ocupações de cuidado representam cerca de um quarto do total de empregos, como ocorre no Brasil. Na França, o porcentual é de 23,5%; na Colômbia, de 20,2%. No entanto, o padrão dessas relações e a regulação estatal são muito diferentes.

“Na França, o Estado tem um histórico de proteção e regulação do setor muito reconhecido mundialmente; já no Brasil, mesmo com a forte presença estatal na proteção social, a regulação é incipiente”, explicou a socióloga. “Ainda assim, com esse peso similar do segmento no mercado em realidades tão diferentes, penso que o cuidado se tornara uma forma elementar de reprodução social”, complementou. 

Gênero e raça nos cuidados

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), o perfil dessa atividade é, marcadamente, feminino e negro. “Cerca de 80% dos trabalhadores do cuidado são mulheres, sendo a maior parte negras”, destacou Nadya. Ela ainda ressaltou que, mais do que tratar do atendimento ao idoso e do futuro mercado como um todo, o debate em torno da regulamentação do cuidado também diz respeito à empregabilidade feminina e à estrutura de oportunidades para inserção dessas pessoas — inclusive à política de qualificação.

Heterogeneidade do setor e impasses para a regulação

O segmento do cuidado também é muito heterogêneo no tipo de atividade. Existem diferenças profundas entre o cuidado realizado no domicílio ou em instituições, entre o trabalho direto (para o corpo do atendido, ou do cuidado de crianças) e o indireto (bem-estar, como a preparação de alimentos ou limpeza), além do grau de recorrência exigido em cada função. Além disso, o perfil de quem contrata é muito diverso.

Tudo isso, segundo Nadya, “afeta a forma de contratação, a necessidade de qualificação e as possibilidades de controle e proteção do trabalho, o que traz enormes desafios para a regulação."

Contratação e diferenças nas condições laborais 

Hoje, apenas um quarto dos cuidadores é contratado diretamente pelas famílias. O Estado responde por outro quarto das contratações do cuidado — uma participação substancialmente maior do que a sua média no mercado de trabalho em geral, que gira em torno de 8%. 

Essa diferença é relevante, pois, no setor público, as condições de regulação de salários e de trabalho tendem a ser mais favoráveis, em contraste com as situações muitas vezes precárias da contratação direta.

O problema do acesso

Apesar da expressividade do mercado, a socióloga ressaltou que a grande maioria da população brasileira ainda não acessa os serviços pagos de cuidado. “Oito em cada dez domicílios não têm renda para contratar esses serviços”, enfatizou. 

Ao mesmo tempo, as pesquisas realizadas pela professora indicam que o trabalho não remunerado de cuidado é realizado majoritariamente por mulheres e meninas — principalmente negras —, que, muitas vezes, deixam a escola ou o emprego para assumir a responsabilidade de cuidar de alguém em casa. “O peso da atividade não remunerada nesse segmento é acachapante na parcela mais pobre. E, mesmo nos domicílios de renda mais alta, embora seja menor, ainda se mostra desproporcionalmente mais relevante do que o trabalho remunerado”, observou a socióloga quanto à comparação entre os volumes remunerado e não remunerado dessas funções.

Os obstáculos da proteção e o risco de aprofundar desigualdades

Por fim, Nadya chamou a atenção para o esforço de garantir direitos sem aprofundar desigualdades na atividade de cuidados — o que pode ocorrer sem uma regulação equilibrada e cuidadosa. “Quando regulamentamos um setor, por exemplo, com a PEC das Domésticas, ampliamos a diversidade de vínculos — mensalistas, diaristas de menos (ou mais) de três dias, contratadas por família ou por empresa, por domicílio ou plataforma — o que acabou protegendo apenas uma minoria.” 

Ela ainda destacou que, no núcleo do cuidado domiciliar (mensalistas, que trabalham na família, com contrato formal e Previdência), cerca de 28% do conjunto desse mercado recebem proteção.

Outro ponto delicado é que, “diferentemente do cuidado ofertado pelo Estado, aquele efetuado no domicílio é, hoje, carregado de demandas e de sentenças na Justiça. Todas muito diferenciadas. O exercício desse trabalho está fortemente em disputa, o que é reflexo dessa ‘parafernália’ das condições de contratação sem regulamentação”, concluiu.

José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da FecomercioSP, afirmou que a regulação laboral do cuidado precisa considerar as próprias especificidades, especialmente no contexto do cuidado domiciliar. Segundo ele, há uma sobreposição frequente entre as funções de cuidadoras e empregadas domésticas, o que traz questões jurídicas relevantes. Lembrou ainda que, “após a PEC das Domésticas, de 2013, muitos empregadores passaram a optar por diaristas, sem vínculo formal, em razão da dificuldade de cumprir exigências como controle de jornada dentro de casa. Será que não há uma forma intermediária de regulação que ofereça segurança ao empregador e, ao mesmo tempo, proteja quem cuida?”, provocou. Ele acredita que encontrar esse equilíbrio é essencial para avançar na formalização do setor sem repetir os erros do passado.

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