Legislação
03/12/2024Mudanças no ITCMD via Reforma Tributária pode configurar invasão na competência legislativa dos Estados
Para Fernando Moraes Sallaberry, leis estaduais poderiam adotar regras distintas e gerar insegurança jurídica
O paradoxo criado pelo Projeto de Lei (PLP) 108/2024, que ao mesmo tempo define as diretrizes do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), também altera as regras para o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e gera enormes discussões sobre a competência legislativa dos Estados sobre um tributo estadual que incide sobre a transmissão de heranças e doações, aplicado sobre o patrimônio.
As mudanças no ITCMD presentes no PLP foram discutidas no 6º Congresso de Direito Tributário do Conselho Estadual de Defesa do Contribuinte de São Paulo (Codecon/SP), que aconteceu na última quinta-feira (28), na sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
A regulamentação do ITCMD preenche uma lacuna histórica, pois, desde a promulgação da Constituição de 1988, não havia uma legislação complementar para regular esse imposto estadual. Embora a uniformização do ITCMD entre os Estados seja um avanço positivo, há certos pontos que merecem atenção.
Competências estadual e municipal
De acordo com Fernando Moraes Sallaberry, ex-servidor da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Sefaz/SP) e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP), o Código Tributário Nacional (CTN) é claro quanto a competência dos estados e municípios sobre impostos regionais, como o ITCMD.
Segundo o Artigo 6º do CTN: “A atribuição constitucional de competência tributária compreende a competência legislativa plena, ressalvadas as limitações contidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, e observado o disposto nesta Lei.”
“O Congresso Nacional não pode, mediante edição de Lei Complementar, passar a editar normas de competências estadual ou municipal, para as quais a Constituição Federal não determinou a edição de lei complementar”, apontou Sallaberry.
As consequências disso seriam um descompasso entre as legislações federal e estudais, com cada estado podendo adotar regras próprias para o ITCMD, o que pode gerar um enorme aumento no contencioso. “Parece possível a lei estadual deixar de adotar regra da Lei Complementar (LC) oriunda do PLP 108/24, ou adotar regra distinta, e até contrária, relativamente às matérias cuja materialidade não exija lei complementar federal. A imposição obrigatória de normas de lei complementar que não tenham sido editadas com base em comando constitucional específico poderia configurar invasão na competência legislativa dos Estados, promovida União”, afirmou Sallaberry.
Ademais, o juiz do TIT-SP lembrou que na década de 1990, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, pelas suas duas Turmas, que o ITCMD é desdobramento do antigo ITBI estadual. “Há, no entanto, um flagrante contrastante entre a quantidade de regras disciplinadoras do ITBI (no CTN) e a quantidade delas no PLP 108/24”, apontou Sallaberry.
Outras divergências
Os ajustes no ITCMD visam uniformizar a legislação no âmbito federal, por meio da padronização da base de cálculo sobre o valor de mercado, além de manter o tributo no domicílio do falecido, para o caso de imóveis, e sob avaliação do mercado, quando se tratar de sociedades.
A proposta do PLP 108 de tributar bens no exterior também é controversa, pois atualmente a maioria dos Estados não o faz em razão das dificuldades de fiscalização e dos acordos internacionais. Com a aprovação, o ITCMD passará a incidir sobre os bens de brasileiros no exterior provenientes de herança ou doação.
“Há, aparentemente, no PLP 108/24, várias regras cuja materialidade se encontra no campo do direito civil (tal como a redefinição de “doação”) ou que adotam entendimentos que parecem não se conformar com os institutos, conceitos e formas do Direito Civil, como, por exemplo, o perdão de dívidas”, afirmou Sallaberry, que recomendou, diante deste cenário, que sejam analisadas todas as normas do PLP 108 para definir se devem efetivamente ser convertidas em LC, sem risco de serem declaradas inconstitucionais desde a origem.
Legislação tributária X direito privado
O projeto define os fatos geradores, contribuintes e base de cálculo tanto para transmissões causa mortis quanto para doações. Segundo o texto, o ITCMD incidiria, por exemplo, sobre qualquer transferência de bens ou direitos decorrentes de morte ou doação, abrangendo herdeiros, legatários, beneficiários fiduciários e fideicomissários (disposição testamentária em que um herdeiro ou legatário é encarregado de conservar e, por sua morte, transmitir a outrem a sua herança ou o seu legado).
Entretanto, como apontado por Fábio Lemos Cury, doutor e mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o projeto enfrenta desafios fundamentais no equilíbrio entre a legislação tributária e o direito privado. Uma das críticas centrais é o uso de conceitos como "destinatário de bens ou direitos", que pode gerar interpretações diversas sobre a incidência do imposto em situações como fideicomissos e trusts.
Os principais pontos de controvérsia
1. Conceito de Transmissão e Fideicomissos
Neste caso, Cury ressaltou que a transmissão de bens pode estar subordinada a termos ou condições. Isso levanta dúvidas sobre quando ocorre, propriamente, o fato gerador do ITCMD. A apresentação argumenta que, em situações envolvendo condições suspensivas, a transferência não deve ser considerada definitiva até que a condição seja implementada, o que impede a cobrança do imposto de maneira imediata.
2. Consolidação da Propriedade em Usufrutos
O artigo 167 do PLP 108/2024 prevê a não incidência do ITCMD na extinção de usufrutos que resultem na consolidação da propriedade plena pelo instituidor. Porém, Cury questiona se essa consolidação deve ser tratada como transmissão de bens por sucessão ou doação, dado que, em certos casos, pode não haver liberalidade ou sucessão causa mortis envolvida.
3. Regras para Trusts
Ainda pouco regulados no Brasil, os trusts são outro ponto de divergência. Segundo o PLP, a transmissão de bens de um trust ao beneficiário depende do tipo de trust (revogável ou irrevogável) e da ocorrência de termo ou condição. Cury argumenta que a legislação atual não aborda adequadamente as situações em que a titularidade dos bens está vinculada a eventos futuros e incertos, o que impede a tributação antes do implemento desses eventos.
A uniformização proposta pelo PLP 108/2024 pode trazer maior previsibilidade aos contribuintes, mas as lacunas e ambiguidades apontadas por especialistas podem levar a litígios prolongados. Para os estados, as novas regras podem gerar desafios na arrecadação, especialmente em casos de difícil definição sobre a incidência do imposto.
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